ENSAIO丨A complexa Igreja do Brasil independente

Padre Bernardo Maria
Padre Bernardo Mariahttp://nazare.org.br/
Monge do Mosteiro Cisterciense Nossa Senhora de Nazaré, em Rio Pardo - RS

Neste ano de 2022, em que completam-se 200 anos desde a declaração de independência do Brasil, um olhar atento aos movimentos civis e eclesiais daqueles inícios de século XIX leva-nos a contemplar a complexidade da organização e da constituição da Igreja Católica naqueles tempos. Os movimentos liberais de 1820 na Europa obrigaram o rei português a voltar para Lisboa e deixar como regente no Brasil o seu filho Dom Pedro. Os líderes desses movimentos planejavam a rápida recolonização do Brasil em favor dos interesses maiores do comércio português, ameaçados pela presença britânica. Isso levou o Brasil ao desenvolvimento do Partido da Independência, ou Partido Brasileiro, liderado por José Bonifácio e Joaquim Gonçalves Ledo, aos quais se uniu em 09 de janeiro de 1822 o Príncipe Regente ao responder “eu fico” às Câmaras portuguesas, que exigiam sua volta a Portugal. Assim, nascia o Brasil para uma vida independente, mantendo a unidade nacional mediante o fortalecimento do poder central, organizando a monarquia.

No campo eclesial, reinava o Papa Pio VII, que já em 20 de abril de 1884 publicara a Carta Encíclica Humanum Genus, advertindo contra o perigo da maçonaria, e em 13 de setembro de 1821, no vigésimo segundo ano de pontificado, publicara a Bula Ecclesiam a Jesu, condenando a maçonaria carbonária. A Carbonária foi uma sociedade secreta e revolucionária que atuou na Itália, França, Portugal, Espanha, Brasil e Uruguai nos séculos XIX e XX. Fundada na Itália por volta de 1810, a sua ideologia assentava-se em valores patrióticos e liberais, além de se distinguir por um marcado anticlericalismo. Os Carbonários – ou Carvoeiros, do Italiano: Carbonari –, para alcançar seus objetivos, estavam prontos a cometer assassinatos e revoltas armadas. A composição do quadro era separada em duas classes – aprendiz e mestre. Havia duas maneiras de se tornar um mestre: servir como aprendiz por, pelo menos, seis meses, ou por ser um maçom quando do seu ingresso.  Seus rituais de iniciação eram estruturados em torno do comércio de carvão, daí o seu nome.

Há que se observar que a história do Brasil aponta os fundadores do Império brasileiro (Dom Pedro I e José Bonifácio) como sendo maçons. A Carbonária, fundada em Portugal em 1822, teria chegado ao Brasil com José Bonifácio, o qual, apesar de ter participado na loja da Alvenaria, havia sido iniciado muito antes na Alta Venda (ou Alta Vendita). Quase todos os ocupantes dos mais altos cargos administrativos do Império eram maçons (apesar de certamente haver exceções); as revoltas e movimentos separatistas foram conduzidos por maçons (antes de 1822 e depois); a narrativa do discurso da Independência foi urdida por maçons; a imensa maioria dos jornais e periódicos do Brasil era de maçons. Apesar disso, não se encontra em lugar algum o registro de uma relação direta da maçonaria, enquanto instituição, com a Independência e tampouco com o Império do Brasil. Os membros eram da maçonaria, mas a maçonaria não estava envolvida? Ao menos um membro do episcopado, contudo, solicitou explicitamente a permanência do Príncipe Regente no Brasil, em Janeiro de 1822:

“Senhor, foi para nós e para todo o povo de São Paulo e de todo o Brasil, como uma seta que atravessou os nossos corações, o decreto das Cortes Gerais de Portugal, que manda Vossa Alteza Real seja recolhido a Lisboa, deixando-nos órfãos sem pai. Esse decreto está tão longe de fazer a felicidade dos povos a que se devem dirigir todas as leis, que servem de fazer a infelicidade e fomentar desordens e partidos, que infalivelmente se hão de seguir da ausência de Vossa Alteza Real, apartando-se deste continente do Brasil. (…) Não se aparte Vossa Alteza Real do Reino do Brasil, onde todos os brasileiros amam, reverenciam Vossa Alteza, sobretudo os honrados paulistas; todos eles, eu e o meu clero estamos prontos a dar a vida por Vossa Alteza e pela família real”.

1º de Janeiro de 1822 – Dom Mateus, bispo de São Paulo. In: CAMARGO, História Eclesiástica do Brasil. Ed. Vozes, pp. 308-309

As contradições e as margens pouco definidas entre história e lenda, que aliás são próprias das sociedades secretas, que emitem ordens oralmente, pouco ou nada registrando por escrito, dificultam a tarefa da investigação sobre a Carbonária em nosso país.

Concretamente, o Brasil imperial herdou as instituições básicas, como a Igreja e o Exército colonial. As irmandades religiosas atravessaram florescentes o inteiro período colonial, mostrando a mesma pujança também no alvorecer do século XIX. Os primeiros núncios apostólicos não se cansaram de lutar para que se estreitassem os laços da Igreja do Brasil com a Santa Sé. Aos 13 de maio de 1818, uma realidade realmente alvissareira aconteceu: foi nomeado para a diocese de Mariana o primeiro bispo declaradamente “ultramontano” – qualificativo, cunhado no século XIII, para designar pessoas ou associações alinhadas com as diretrizes do Romano Pontífice – da história da Igreja no país, e que marcaria época. Seu nome: Dom Frei José da Santíssima Trindade (franciscano natural do Porto). Dom José, ao longo de seu governo episcopal, combateu por todos os meios o liberalismo e as obras “perniciosas”, como O Espírito das Leis, de Montesquieu, e O Contrato Social, de Rousseau. O espírito tridentino (relativo ao Concílio de Trento: 1545 a 1563) que o movia tornou-se público desde a sagração episcopal, acontecida no dia 09 de abril de 1820. Após o seu falecimento, no entanto, seguiu-se um período de vacância, no qual, segundo afirma Raimundo Trindade, a obra de reforma decaiu, devido ao “governo calamitoso do cabido regalista – Regalismo: sistema dos que defendem as regalias e privilégios do Estado contra as pretensões da Igreja –, desvirtuado e inteiramente desprestigiado como corporação eclesiástica” (Raimundo Trindade, Arquidiocese de Mariana, vol. I, pp. 291, 296).

O recrudescimento da defesa da ortodoxia e do Romano Pontífice ameaçados pelas convulsões revolucionárias europeias refletiu sobre o clero do Brasil; e muitos sacerdotes, ao entrarem em contato com a novidade, tentariam implantá-la no solo pátrio. Alguns padres-deputados da constituinte de 1823 e das eleições parlamentares de 1826 e seguintes já se manifestavam por ela, e, contemporaneamente, a escolástica, até então esquecida, reapareceu. Na primeira metade do século XIX, já era possível encontrar tomistas convictos como o padre português Patrício Muniz e o italiano Gregório Lipparani, que haviam estudado em Roma. Padre Muniz ainda se enquadrava no tipo “tolerante” e seu escolasticismo seria depois colocado em dúvida por Sílvio Romero e Pe. Leonel Franca; mas, o mesmo não se pode dizer dos padres Luís Gonçalves dos Santos, cônego e professor do Rio de Janeiro, e seu grande aliado, Pe. Willian Paul Tilbury, um inglês radicado no Brasil. Juntos, eles redigiriam uma obra apologética intitulada Antídoto católico e também foram os primeiros a cometer a proeza de condenar abertamente a maçonaria.

A Igreja do Brasil independente continuou com o Padroado – direito concedido pelos Papas aos reis de Portugal de administrar alguns assuntos religiosos nas terras além-mar – e herdou a dependência do Estado, característica da época colonial, e os bispos, pouco numerosos, não chegaram nunca a constituir um centro de unidade eclesial. Em sua maioria, bispos e sacerdotes constituíam uma segunda esfera administrativa do governo. No interior da Igreja, destacavam-se duas grandes correntes de opinião: uma liderada pelo padre Antônio Feijó – contrário às diversas medidas restritivas da Constituição, outorgada em 1824, despertou a antipatia de D. Pedro I –, incluindo os sacerdotes e o bispo de São Paulo, que consideravam a necessidade de constituir uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conselho Nacional vinculado ao Estado. Esses iluminados eram partidários de um sacerdócio sem celibato e da liquidação das ordens religiosas. A outra corrente, encabeçada pelo bispo da Bahia, Antônio de Seixas, defendiam a formação de um clero celibatário, mais ligado a Roma, com autonomia frente ao poder político.

Apesar de tudo, é certo que o Estado reconhecia à Santa Sé o direito de conceder Padroados, pois, seis meses após o texto constitucional ser outorgado, isto é, aos 07 de agosto de 1824, foi organizada uma missão diplomática para ir a Roma, sob o comando de monsenhor Francisco Correia Vidigal. Acompanhava-o seu secretário, Vicente Antônio da Costa, e o jovem Bernardo Rangel. A escolha em si mesma já era ambígua, considerando-se que Vidigal aplicava as máximas liberais no campo religioso, fazendo uma nítida distinção entre Igreja e papado, nutrindo contra este último um espírito de desconfiança. Por isso, a missão que encabeçava tinha dois objetivos: que Roma aceitasse e legitimasse o novo país como nação independente e que o Papa confirmasse os “direitos” imperiais.

Mesmo no século XIX, era muito difícil para o Papa comunicar-se com os católicos do mundo inteiro e sobre eles exercer o seu ministério. Além disso, a Igreja Católica não era uma instituição tão poderosa e materialmente presente como alguns historiadores insistem em descrever. Assim, o regime de Padroado deveria proteger e apadrinhar (daí o nome “Padroado”) a construção de templos, o sustento da ação evangelizadora da Igreja, criar dioceses, nomear padres e bispos, aprovar ou recusar a vinda de uma Ordem religiosa para o território do Império, recolher dízimos, conduzir investigações do Tribunal Eclesiástico, além de algumas outras poucas questões administrativas. Infelizmente, esse regime teve seus limites ultrapassados, e o Império português – e depois o brasileiro – acabou por imiscuir-se em assuntos espirituais da Igreja, como por exemplo: determinando o número de celebrações de Missas nas paróquias, limitando a uma só o número de confrarias em cada igreja, e determinando quantas velas o altar deve ter. Essa interferência indevida, oriunda de ideias liberais que já haviam contaminado os governos português e brasileiro, é chamada de Regalismo, que passou a asfixiar a ação da Igreja Católica.

A Igreja do jovem Brasil independente teve seus dramas e complexidades, e nela produziram-se muitas feridas doloridas, herança de um tempo em que havia todo tipo de batalha nesta Terra de Santa Cruz. Quis, porém, a Providência divina que tais feridas não fossem “de morte”, e que, sob a proteção de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, o Corpo místico de Cristo continuasse dignamente vivo em nosso território, nestes últimos 200 anos de história brasileira.

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