CRÔNICA | Ficamos com tudo

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Crônica premiada na 3ª edição do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária: Antologia 200 Anos de Independência

Não me recordo de ter vivido um 7 de setembro chuvoso e friorento. Só me dei conta de que a mochila, a jaqueta, a barra da calça e os meus sapatos estavam molhados no metrô, quando encontrei um lugarzinho para sentar. Depois de ler meia dúzia de páginas de um livro qualquer percebi, um tanto aborrecido, que dois pingos d’água atingiram uma página e transformaram duas palavras em dois horrorosos borrões, impossibilitando para sempre a leitura. Os pingos que caíram no meu livro desprenderam-se da boina encharcada. Decidi não só ignorar o quase insignificante empecilho para a leitura, mas a própria leitura; abandonei o livro na mochila e passei a observar os passageiros à minha volta. Eu havia decidido ir ao Parque da Independência, queria ver o Museu do Ipiranga e os festejos de 7 de setembro.

Mas não era um 7 de setembro qualquer, com marchas, desfiles, oficiais fardados, acenos de velhos Pracinhas, Hino da Independência, Hino Nacional, fogos de artifício, cavalos, motos, carros, tudo coberto de verde-e-amarelo… Não. Era o Bicentenário. A mim parecia que os dois séculos desde aquele primeiro 7 de setembro só fizeram renovar o espírito patriótico. É como se estivéssemos sob uma atmosfera mais límpida, mais cristalina, mais inteligível de patriotismo. E eu sou patriota. E sinto ter de afirmar isto com um quê de reacionário, porque hoje o patriotismo está num malbaratamento triste de se ver. Mas basta caminhar pelas ruas num dia de celebração cívica para constatar que o povo ainda é fiel às suas boas tradições. É a mídia. Esta porca gorda deita-se à nossa frente a fim de nos impedir a visão da realidade. Patriotismo é feio só nas redações dos grandes jornais, nos campus universitários e entre os formadores de opinião, mas não o é entre o povo. Jamais. Eu vi. Aliás, eu vejo sempre.

Numa parada entrou um pedinte no trem. Mas não pude ajudá-lo. Eu não trazia dinheiro em espécie, nenhuma moedinha… Esboçando um sorriso inocente, pensei: “E se ele aceitasse Pix?”. Passei deste pensamento para a análise de uma culpa verdadeira: ainda em casa eu tivera receio de sair simplesmente porque… chovia. Senti vergonha. Onde já se viu? O que meus mestres diriam de mim? O que meu confessor diria de mim? O que o autor deste livro que eu tentara ler diria de mim?… O que D. Pedro diria de mim? Sim, D. Pedro. Todos conhecem a história da viagem que ele fizera desde a Côrte até São Paulo; viagem feita sobre o lombo de mulas. Em Santos, ele fora acometido por diarreia e provavelmente subira a serra contorcendo-se de comichões, para além de ter de interromper a marcha da nobre mas descaracterizada comitiva sempre que tinha de atender aos imperativos dos intestinos… Que será que ele diria de mim? Vergonha.

Honestamente, fiquei um tanto decepcionado com o que vi no metrô: aqueles que usavam verde-e-amarelo eram pouquíssimos. Talvez, pensei, porque a maioria dos patriotas dirigiam-se à Paulista por um itinerário diferente do meu. Eu ia para o Ipiranga, não para a Avenida Paulista. Ainda assim, os poucos canarinhos que vi pelo caminho impressionaram-me. Um patriota sempre causa profunda impressão. E lá estava eu, de pé, com os ouvidos a quase dois metros do chão captando aquela deliciosa – e por vezes emocionante – conversa do alheio. Eles falavam sobre como amavam esta terra, como tinham orgulho de pertencer ao Brasil… Falavam também do quanto estavam preocupados com aquelas coisas que ameaçavam a nação.

E eu não só os ouvia, mas os via também. Notei o brasão da cobra fumando na jaqueta de um, o senta a púa no boné de outro; para além, é claro, do próprio brasão da seleção brasileira, aquela que foi cinco vezes campeã do mundo. Isto sem falar nas bandeiras, muitos cobriam-se com elas simplesmente. Saí da estação Alto do Ipiranga e, porque o motorista do aplicativo demorava-se, decidi caminhar até o meu destino; não era longe, e eu tenho pernas longas. Subi a Avenida Nazaré atento à paisagem. Tudo me impressionava, porque eu queria encontrar em tudo alguma significação patriótica. Igrejas antigas sempre abertas, hospitais de outros tempos ainda em funcionamento, casinhas encantadoras que se escondiam atrás de jardins bem cuidados, até o anúncio do carro da pamonha que eu ouvia longe… Em cada uma destas coisas eu via um pedacinho do Brasil. Isto até chegar ao suntuoso Parque da Independência, é claro. Ali só há vez para um aspecto da realidade brasileira: a grandiosidade.

Mas não era um esplendor somente arquitetônico, estético ou paisagístico. Não. Havia uma prodigalidade que representava o Brasil orgânico e espiritual: a multidão que saiu às ruas neste 7 de setembro era formada por famílias, muitas e muitas famílias, uma procissão de famílias. Avós, avôs, tios, tias, mães, pais, primos, irmãos… Provavelmente até sogras bem-humoradas fizeram-se presentes. O patriotismo só pode ser encarado como o cumprimento de um mandamento, o IV Mandamento de Deus: Honrar Pai e Mãe. Eu sei, soa reacionário demais. Mas só para os ouvidos que em cada “bom dia” amável ouvem as sirenes que anunciam o bombardeio iminente. Este 7 de setembro do bicentenário foi uma verdadeira desforra contra os palhaços que sambaram sobre a bandeira nacional.

De volta ao metrô, passei a viagem pensando nas… Côrtes de Lisboa. Depois que D. João foi embora, os políticos portugueses, a representar os interesses dos burgueses ou sei lá de quem, passaram a exigir do Brasil a devolução integral de todas as benesses que a condição jurídica de Reino Unido com Portugal havia lhe possibilitado. Absurdo! A olhar de longe, só posso dizer que a ganância dos homens impediu a manutenção da união do mundo lusitano – pelo menos a união entre Brasil e Portugal – e provocou o grito de D. Pedro. Sim, D. Pedro ficou furioso ao saber da ganância dos homens, estes até o chamaram de “rapazinho inexperiente”, de “brazileiro” e coisas do gênero. Uma pena, porque ficamos com tudo quando podíamos ter partilhado da grande porção que recebemos da Providência.

***

Obra premiada no EDITAL DE SELEÇÃO PÚBLICA Nº 01, SECDC/SECULT/MTur, de 02 de setembro de 2022, Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, Antologia 200 Anos de Independência – 3ª Edição, realizado pela SECDC/SECULT/MTur.


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2 COMENTÁRIOS

  1. Obrigado, Meri querida! Sim! Hahaha O Pix suprimiu as moedinhas dos pedintes. Esta situação me serviu como lição: antes de sair de casa, agora ponho algumas moedas nos bolsos…

  2. Parabéns, Vitor, pela premiação! É mesmo um ótimo texto, uma bela crônica. Não me lembrava que foi nela que você descreveu o entrave às esmolas com a digitalização do dinheiro e o PIX…

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