BRUNA TORLAY丨Por que eu gosto de ler romances

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Considerando a completa incapacidade de os ditos deputados conservadores comunicarem-se com a base e prestarem atenção a problemas importantes que sinalizamos por pura gentileza, confesso a vocês que meu interesse pelo que fazem ou deixam de fazer naquela bolha infecta chamada Brasília reduziu-se a zero. São uns inúteis completos. Não há o que fazer, a não ser aguardar pacientemente que virem gente.

Enquanto isso, observei a falta que faz na vida de qualquer pessoa ler romances. Bons romances. Daqueles inesquecíveis. Minha filha tinha de ler “As aventuras de Huckleberrey Finn”, do Mark Twain, mas estava enrolando. Saí dizendo que era uma bela de uma aventura, fiz com que me contasse os primeiros capítulos e eis que até perdeu o horário de ir à escola por ter avançado madrugada adentro, ao entender a que o romance vinha. Hoje me contou uma parte tão tocante da aventura que fui tomada do desejo de a ler, mesmo me achando meio velha para romances desse tipo.

Não há idade certa para livros bons. Porque eles são sempre interessantes, a qualquer altura da vida. Ainda que seja para nos dizer em segredo “não é que era mesmo uma bela de uma aventura?”

Estando nesse espírito, recebi uma edição do Kaspar Houser, de Jacob Wasserman. O típico romance que me cativa. Mal chegou, foi para a cabeceira e tornou minha vida ordenada novamente. Quando estou lendo romances, como que recordo das prioridades verdadeiras, e faço absolutamente tudo para cumprir os deveres do dia de modo a achar o maior espaço de tempo possível para avançar a leitura. Penso em cada personagem. Imagino saídas. Vivo em meio a dois, três mundos, dos quais o meu é como um plano reflexivo dos fictícios e profundamente verdadeiros outros dois.

Ah, claro. Quando leio um romance vivo três mundos porque, ordinariamente, divido-me sempre entre dois: a vida do filósofo que procuro no momento entender e a minha própria. O romance fecha a trindade da compreensão, trazendo estabilidade à balança. Eu gosto de ler romances porque eles são o fiel da balança de minha vida interior. A vida concreta de um lado; as reflexões infinitas mediadas por um estranho de outro; o romance enquanto mapa perfeitamente limitado contendo começo, meio e fim de uma vida que terei chances de compreender, enquanto percorro as vias infinitas da minha própria (que só entenderei perfeitamente no dia do juízo final) e da alma caridosa por meio da qual procuro insistentemente ampliar a visão do real para além de minha míope experiência.

Mas a alma de Kaspar Houser segundo Jacob Wassermann eu verei por inteiro. Já a percorri pela metade e ao alcançar o ponto final do quadro inteiro, terei dela o desenho na memória, de modo a revisitá-lo continuamente pelo resto de minha vida, fazendo-o ponto arquimediano de aporias, exemplo impecável de infinitas reflexões, a imagem de um todo multifacetado, mas que, ainda assim, foi-me possível percorrer. Eu gosto de ler romances porque há neles a imagem do todo, cujo sentido gasto as solas da alma buscando, sem expectativa de um dia realmente vislumbrar.

Platão rebaixava, na hierarquia dos seres, a imagem do real em prol de sua causa, a ideia. Mas entrevia na beleza a senda, por excelência, de captarmos, na parte, o todo. Exatamente o que os romances nos propiciam, sendo eles um todo que existe como parte. Quem vive com os olhos voltados ao todo, mas certo da limitação própria de cada parte só poderia, obviamente, gostar de romances. Por isso, insisto: desconfie sem dó de qualquer aspirante à filosofia que não goste de romances. E também de seu deputado — que a essa hora está tão preocupado com o sentido das partes que não faz a menor ideia de como alcançar o todo.

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