BRUNA TORLAY丨PDL de Erica Hilton distorce resolução do Conselho Federal de Medicina

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

O assunto

Entenda os detalhes em torno do problema

Na última semana, ginecologistas e obstetras de todo o Brasil passaram maus bocados, ao observar a reação de uma parlamentar sem formação médica, mas respaldada pela Federação das associações de ginecologia e obstetrícia (Febrasgo), contra a resolução 2.378/24, publicada pela autarquia responsável em fiscalizar e regulamentar a prática da medicina ( Conselho Federal de Medicina), vetando a assistolia fetal com base nos prejuízos que este método acarreta à mulher atendida, à defesa da vida humana e, consequentemente, à razão de ser da própria medicina.

O mal-estar de inúmeros médicos se deve às visíveis distorções da resolução 2.378/24 no projeto de decreto de lei (PDL) assinado pela deputada federal Erica Hilton, provavelmente em razão de seu absoluto desconhecimento da literatura médica recente, assim como do sentido mesmo da medicina enquanto prática. Para compreender a querela, é preciso explicar a resolução e sua razão de ser, para depois apontar de que forma a deputada os omite no instrumento legal utilizado para derrubar a nova regulamentação publicada pela autarquia no último dia 03 de abril.

Em primeiro lugar, vale dizer que o texto da resolução publicada pela CFM é público e pode ser lido na íntegra por qualquer brasileiro de boa vontade. O que se veta? A prática da assistolia fetal em fetos contando a partir de 22 semanas de gestação, nos abortos realizados pelo SUS em razão de estupro. A resolução não discorre sobre o direito ao aborto em caso de estupro, mas aponta as razões médicas pelas quais a assistolia é incompatível com a ética médica, por cinco princípios explicados ao longo do documento e resumidos em sua conclusão.

O primeiro consiste na beneficência. Segundo o CFM, “a flexibilização ou permissibilidade do procedimento de assistolia fetal não promove de forma clara a beneficência materna, salvo em situações específicas.” Portanto, não há provas de que o método necessariamente beneficie psicologicamente a mulher que se submeta ao aborto realizado por essa via, uma vez que o objetivo da mulher que recorre ao aborto em caso de estupro é não levar adiante a gestação, e não vingar-se da pessoa concebida de modo não-consensual impondo-lhe necessariamente a morte.  

O segundo princípio consiste em não maleficência. Segundo o documento, “o procedimento de assistolia fetal claramente é destrutivo e maleficente a uma vida humana potencialmente viável em várias situações. Também configura maleficência com efeitos adversos específicos adicionais à mãe”. Isso quer dizer que injetar substâncias capazes de produzir parada cardiorrespiratória em fetos, seja diretamente no coração, seja no líquido amniótico, além de violar uma pessoa com possibilidade de sobreviver FORA DO ÚTERO MATERNO, prejudica a saúde da própria mulher que se submete ao procedimento. Há extensa bibliografia provando esse princípio fundamental.

O terceiro princípio consiste em justiça, isto é, “a flexibilização do procedimento de assistolia fetal ou sua permissividade impõe carga adicional ao Sistema Único de Saúde (SUS) sem claro ganho de equidade”. O custo do aborto realizado no SUS em razão de estupro se torna mais caro ao Estado, sem ganhos em termos de justiça, uma vez que ele consiste em garantir que a pessoa a ser extraída do útero materno, em atenção ao desejo da gestante de interromper a gravidez, saia sem vida. Nesse sentido, produz-se uma injustiça na tentativa de agir conforme a justiça.

O paradoxo anterior conduz ao quarto, consistente na autonomia, de modo quea opção pela interrupção da vida humana viável não pode ser compreendida de forma simplista como liberdade ou autonomia”, pois “a liberdade para encerrar uma vida humana potencialmente viável coloca-se também como tirania da vontade, gerando o extermínio forçado de uma outra vida”.

Logo, o quinto e último princípio elencado se refere ao risco do método à própria prática da medicina, traduzindo-se num problema de responsabilidade. Citando mais uma vez o documento: “a eliminação de vidas humanas viáveis promovida por uma flexibilização ou permissividade indevida do procedimento de assistolia fetal prévio ao abortamento configura claro desrespeito às gerações posteriores e coloca em perigo a identidade profissional da medicina, abrindo margem para consequências diversas que precisam de melhor análise ética, profissional, científica e social”. Trocando em miúdos, trata-se do paradoxo derivado de um método médico que produz artificialmente a morte, quando isso não é imperativo para que se garanta o cumprimento do dispositivo legal garantindo às mulheres vítimas de estupro a interrupção da gestação. Na prática, um ser-humano de 22 semanas tem chances de sobreviver fora do útero materno, de modo que não faz sentido em mata-lo para interromper a dita gestação.

Se você compreender esses pontos, finalmente consegue apreender o sentido da conclusão deste documento, a qual cito integralmente:

Nesse sentido, entendemos que caso a mãe deseje interromper a gestação e o feto tenha chance de sobreviver fora do útero, não devemos matá-lo antes da indução do parto. Posteriormente, o nascituro deve ser tratado com respeito e dignidade, com cuidados necessários para que a vida seja mantida ou com cuidados paliativos, quando indicados (caso não se anteveja uma chance razoável de sobrevida sem deficiências graves).

Traduzindo em linguagem simples: é possível interromper a gestação SEM PROVOCAR MORTE DO SER-HUMANO a ser extraído do útero materno. Ademais, cabe aos médicos tratar este ser-humano como se trata aos demais: empenhando todos os esforços e técnicas médicas à disposição para garantir que ele sobreviva, caso tenha chances de seguir desenvolvendo-se de forma adequada.

Essa resolução da CFM deve ser comemorada por todo e qualquer médico apto a compreender o seu alcance, uma vez que, em suma, exprime a plena fidelidade ao juramento de Hipócrates sob um ambiente legal que, muitas vezes, gera impasses à ética médica. A resolução RESOLVE UM CONFLITO, em lugar de aprofundá-lo. É tecnicamente justificado e legalmente cabível. Daí, o desprezo de tantos médicos, que compreenderam o honroso esforço do CFM, diante da contestação de uma parlamentar.

Como Érica Hilton contesta a resolução? Afirmando que o seu objetivo é criar um empecilho para o recurso ao aborto por parte de mulheres vítimas de estupro. Segundo o projeto de decreto legal da deputada, que é público e pode ser lido na íntegra por qualquer brasileiro de boa fé, ela afirma interpretar que a resolução obrigaria mulheres que desejam interromper a gestação a mantê-la. Em suas palavras,

Este Projeto de Decreto Legislativo pretende sustar, compreende a regulamentação da tortura e do tratamento desumano e degradante ao grupo de mulheres, crianças e pessoas que gestam quando recorrem aos serviços de aborto legal, pois obriga a pessoa que está gestando a manter gravidez em qualquer das hipóteses em que se têm a garantia de direito ao abortamento.

Em primeiro lugar, a resolução do CFM vale especificamente para os casos de aborto consequente de estupro, e não aos casos de aborto por anencefalia ou risco de vida para a gestante. Está aí a primeira distorção. Em segundo lugar, o veto se aplica ao método de induzir parada cardiorrespiratória ao feto antes de induzir o parto, ou extrair a pessoa em gestação do útero materno pela via cirúrgica. É mentira que a resolução do CFM obrigue a pessoa que gesta a manter a gravidez até o final.

Por último, faço questão de explicar o que é uma autarquia, caso do Conselho Federal de Medicina, e porque não cabe a nenhum governo em exercício pronunciar-se sobre suas resoluções. Em termos de políticas públicas, isto é, deliberações válidas para uma sociedade vivendo sob um estado e obediente a uma constituição, há duas formas de concebê-las. Quando se trata de assunto conhecido e atinente a profissões específicas, vale o conselho daqueles que têm capacidade de se pronunciar sobre o que deve ser feito. Em outras palavras, ainda que um grupo de parlamentares defenda no parlamento que não se deveria regulamentar a indústria alimentícia em nome da liberdade, a palavra daqueles que detém conhecimento técnico sobre produtos alimentícios potencialmente danosos à saúde pública vale mais.

Os órgãos reguladores têm a função, no moderno estado burocrático, de regulamentar assuntos não discutíveis, porque são objetivamente conhecidos. O Conselho Federal de Medicina é uma autarquia, um órgão do estado criado para fiscalizar e normatizar a prática médica no Brasil, uma vez que a dita prática envolve a vida de seres-humanos, a qual é equitativamente protegida pela Constituição. Nada mais natural, portanto, que o CFM decidir que um método que mata gratuitamente pessoas com chance de viver deva ser vetado no sistema único de saúde, uma vez que subverte a razão de ser da própria medicina, a saber,  resguardar a vida, dentro dos limites de possibilidade até o presente adquiridos pelo conhecimento do organismo humano. Ora, se as investigações mais recentes apontam que um ser-humano contando 22 semanas já tem possibilidade de viver, mesmo fora do útero materno, com os recursos da medicina ao alcance da sociedade, é evidente que essas pessoas não podem ser submetidas à morte.

A coisa é tão clara, de uma evidência tão explícita que custa-me crer por que motivos a deputada Erica Hilton diz em seu PDL que a resolução implica em algo que ela evidentemente NÃO IMPLICA, impondo a opinião de um grupo político, o de seu partido, acima do conhecimento de um órgão responsável por emitir resoluções ancoradas em assuntos objetivos sobre os quais não cabe debate parlamentar.

Sobre os motivos de endosso da Febrasgo à contestação irracional da deputada, os argumentos apresentados pela Federação são inferiores aos argumentos presentes na resolução do CFM, pois não refutam os argumentos que embasam os cinco princípios apresentados pela autarquia. Robinson Dias de Medeiros, por exemplo, presidente da Comissão de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), diz em entrevista ao portal Uol, que “o procedimento de indução à assistolia fetal pode ser adotado, mas é raro e altamente especializado”. Ora, dizer que um método visando produzir parada cardiorrespiratória em uma pessoa com possibilidade de viver, mesmo fora do útero materno, é raramente utilizado nos abortos permitidos não refuta o fato de ele ferir o sentido da prática médica. Ademais, se ele é raramente utilizado, então os argumentos da deputada Erica Hilton, segundo os quais a resolução irá inviabilizar o recurso à interrupção de gravidez consequente de estupro, são ainda mais fracos do que parecem.

Em suma, essa discussão em torno da resolução 2.378/24 revela, no final das contas, os justos motivos pelos quais deliberações proferidas por autarquias sobre assuntos objetivos devem ter peso necessariamente maior que qualquer interpretação contestável e subjetiva de grupos e associações permeadas por interesses meramente políticos. Se você ainda tem dúvidas, observe a imagem escolhida para essa breve dissertação, pois ela contém uma pessoa com 22 semanas de vida.

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3 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns por explicar tão bem e tecnicamente um assunto tão odioso:
    “o as_sassin_ato de inocentes!!”
    Deus abençoe a todos que lutam para que se cumpra a Sua vontade !

  2. Excelente artigo!
    A proposta dessa deputada Erica Hilton então é que se não houver assassinato de um ser humano com 22 semanas de vida, viola o direito da mulher que quer se livrar do bebê?? Como pode!! Em nome da liberdade então temos o direito de ferir um princípio inviolável do ser Humano?? Um absurdo!!! Não tenho nem palavras para descrever meu sentimento, lamentável!!! Que mundo é esse onde vamos parar…
    O que podemos esperar de políticos? Só podem mesmo é fazer politicagem…

  3. Parabéns pela idéia do vídeo. Nos permite um conhecimento real da matéria. Aos interessados e aficionados, a leitura para o aprofundamento do tema, para os demais,
    um modo atual de estar em dia com os
    acontecimentos.
    Uma admiradora do seu trabalho e do seu saber.

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