BRUNA TORLAY丨O dia depois da Eleição

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Bolsonaro e as razões da queda

Diante de seu dono caído, o cachorro acorre exasperado; ladrando contra inimigos, rosnando a ameaças e lambendo ferimentos mais graves. E como um cão fiel, a base canina do presidente da república começou a semana agitando-se de todas essas maneiras, sem cogitar por um minuto as razões de sua queda.

Como observadora coincidentemente posicionada sobre a copa da árvore mais próxima ao acidente, vou arriscar ser alvo de rosnados, uivos e latidos ao indicar as possíveis razões da queda, com o único objetivo de acalmar a matilha eufórica em busca dos caçadores inimigos que, creem eles, provocaram a queda com armadilhas ocultas.

Correr na descida é sempre arriscado. E Bolsonaro correu na descida. Não se acidentou por ter topado com uma corda maliciosamente esticada ali para fazê-lo cair do cavalo – e bem, ainda que fosse esse o motivo, bons cavaleiros, convenhamos, sabem saltar obstáculos.

Bolsonaro tratou muito mal a cadeira presidencial. É evidente que há um golpe em curso, articulado por um grupo poderoso entranhado no estado brasileiro e com inúmeros braços na cultura e no aparelho do estado. Mas uma coisa não invalida a outra. Um grupo trapaceou para sentar no trono. Mas o ocupante atual o deixou vago porque insistiu em correr na descida.

Muitos votos perdidos em São Paulo, maior colégio eleitoral do país, podem ser irrecuperáveis. Se Bolsonaro reatasse a campanha com a agenda que o elegeu em 2018, somando redução do estado, recusa ao assistencialismo eleitoreiro e conservação dos valores morais mais valiosos à sociedade brasileira, talvez recuperasse votos no estado. O abandono da agenda conservadora em prol de uma acomodação com os grupos que se mostraram mais hábeis em pressionar o presidente desgastaram, de fato, sua imagem de reformador convicto. Mas não foi o único problema.

Bolsonaro levou o gesto clássico do bobo da corte à cadeira presidencial. O bobo pode dizer o que bem entender da forma que preferir porque representa a pessoa completamente destituída de poder – logo, ninguém o leva a sério. Ele tem licença para dizer verdades inconvenientes de forma indecorosa porque não porta uma coroa na cabeça nem um cetro na mão. Mas Bolsonaro falhou em assumir o figurino do rei, quando foi alçado pelo povo, de bobo adorado por dizer a verdade, a rei com poder de honrá-la afinal.

Sentou-se no trono, mas não se livrou dos guizos; empunhou o cetro – ou a caneta bic – mas praguejou contra a limitação de seu alcance; recebeu conselhos para proferir o discurso certo na hora apropriada, mas resolveu apresentar piadinhas ao público da varanda do castelo, enquanto muitos lidavam com adversidades cruéis, algumas mortais. Foi uma espécie de rei atento ao povo, mas que cedeu à tentação de fazer-se, ao mesmo tempo, seu próprio bobo da corte. E bem, quando um mesmo ator resolve a todo custo encarnar o herói trágico e o sovina ridículo no mesmo palco, misturando os gêneros e cruzando enredos destoantes, o público fica confuso e perde o fio da meada. Já não sabe como lidar com a quimera bizarra à sua frente e sai procurando assentos em outro teatro.

“Ah, mas que analogia superficial!” A maior parte das pessoas votas por razões superficiais. Se você acredita piamente que todas as pessoas que votaram em Lula ontem são comunistas de carteirinha, você está redondamente enganado. Seu espanto diante da inviabilidade de se ganhar um torneio correndo na descida a cada morro do trajeto se assemelha ao daqueles que não entendem até hoje porque uma rainha aprende, desde cedo, a acenar aos súditos da única maneira adequada a suportar a repetição do gesto ao longo de toda uma vida.

Antes que me condenem gratuitamente, gostaria de lembrar que Bolsonaro não foi, mas nem de longe, o único presidente brasileiro a tratar mal a dignidade da cadeira presidencial. O próprio Lula, que hoje o supera na corrida ora em curso, não a tratou melhor. Pagou bem caro pela falta de decoro; e inúmeros votos que amealhou num passado recente, não recupera nunca mais. Apostou na “renovação da audiência” e exploração das boas piadas que contava da sacada na memória de seus idiotas favoritos.

Se política não é teatro, eu não sei o que é.

Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2023

3 COMENTÁRIOS

  1. Uma critica contundente e perspicaz. E sim, concordo no conjunto e penso que é o momento justo para sairmos bolha, retomar as rédeas do Rocinante e se apresentar de forma adequada. Atingir inclusive o público que não sabe o que é economia ou entender parábolas. De mambembe a ator principal.

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