BRUNA TORLAY丨O circo tradicional e o circo Popó VS Bambam

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Sábado foi um dia atípico. Tudo corria bem até uma tempestade irromper sem aviso prévio por volta das 14h. Ao estouro de um transformador próximo de minha casa, imediatamente seguido da interrupção da energia elétrica, percebi que a rotina não seguiria intacta. De fato, a energia não voltou antes das 22h30. Mas chegou pouco antes da luta de entretenimento mais aguardada do ano: o confronto entre o primeiro vencedor do Big Brother e o tetrampeão mundial de boxe Acelino Freitas, o Popó.

Por volta das 17h, quando percebi que os deveres de sábado passariam ao dia seguinte, fui com a família, como planejava fazer no domingo à tarde, ao “Circo Spacial”, instalado às margens da represa Guarapiranga, não muito longe de casa. Não fui esperando muita coisa, considerando recentes péssimas experiências com circos. Mas fui surpreendida por um grupo de artistas afiado, treinado, criativo e bem-humorado, que, por uma hora e meia, capturou completamente nossa atenção, a ponto de simplesmente esquecermos de todo o resto. Diversão real: o desvio da atenção que produz relaxamento, sem o qual a vida às vezes é fatigante demais.

O melhor número foi o do palhaço branco. Eu adoro palhaço branco. Diferentemente do tradicional, eles quase não usam maquiagem e abusam do sarcasmo, mesclando sátira a humor físico, sempre em tom esnobe. Essa é a graça dos palhaços dessa estirpe. Flertam com a alta cultura. Não acertam tortas na cara, mas organizam arremedos de orquestra com sinetes para imitar trejeitos de maestro, por exemplo, enquanto satirizam os membros da audiência escalados para integrar a improvisada sinfonia. Bem, pelo menos foi o número do ator que ali vimos. Há um ator de Stand UP canadense, se não me engano, que mescla música e o tipo de humor desses palhaços. Ele canta, toca piano, apresenta seu material em forma de música, intercalando as canções com esquetes ácidas. A sátira é amarga. O palhaço branco é praticamente Jonathan Swift repensado para o palco de circo. Tiririca não conseguiria a proeza de encarnar esse tipo icônico. É um estilo que envolve inteligência acima da média. Em suma, imersa naquele número, dei-me conta do quanto adoro esse universo: o das artes, da poesia, da música, do comunicar algo usando formas inusitadas e sintetizando mensagens no puro gesto. Mesmo que seu lastro seja a arte de rua, das feiras, popular, o circo é marcado por alto grau de improviso. A prática diária dos números são como que um aquecimento para a cena principal, sempre permeada de graças não-planejadas. A imprevisibilidade das artes nos descansa dos movimentos ordinários que, com frequência, induzem a uma estranha espécie de automatismo.

Mas à noite, quando a luz voltou, ligamos a TV para ver o coliseu romano moderno chamado lutas de entretenimento. No final das contas, pude notar, pela experiência da tarde, que não passa de uma forma inferior de circo, baseada não na exposição de habilidades extraordinárias, mas num jogo de cena inverossímil (pelo visto, nem Bambam acreditava nas balelas que repetiu ao longo dos últimos meses, a tal ponto tremia dentro da arena de luta). Popó, por sua vez, mal conseguia disfarçar o desejo de encerrar rapidamente a “luta”, para deixar claro quem mandava naquele universo. Como se fosse necessário… É evidente que aquilo ali, para merecer o nome de circo, deveria ter envolvido algum jogo de cena, de modo a manter em suspense o resultado inevitável, mas a ponto de quase confundir o espectador. Essa é a graça dos shows de mágica. Essa é a graça do trapézio. Contamos que a trapezista não vá cair, mas nunca temos certeza. Sabemos que a “mágica” esconde algum truque, mas quase nunca capturamos exatamente qual é. Estar um passo adiante do espectador é o segredo dos bons números de circo, dos bons números de humor, de qualquer tentativa de entretenimento. A imprevisibilidade das artes, afinal, nos descansa dos movimentos ordinários que, com frequência, induzem a um enfadonho modo de automatismo.

Em resumo, o notável pugilista Popó estava mais envolvido com seus brios que com o espetáculo obviamente criado para divertir o público. O pseudo-desafiante, por outro lado, mais exasperado em ter o rosto machucado pelo lutador de verdade, contra quem nunca em tempo algum teve a mínima chance, do que em manter a ilusão dramática até o fim do espetáculo; por isso, tremeu descaradamente nas bases, traindo a insegurança que, por fim, fez desmoronar o personagem anteriormente estabelecido.

Eu esperava mais diversão da luta que do circo. Ledo engano: os verdadeiros profissionais do palco ensaiam todo dia, renovam o tempo inteiro seus números, dominando a arte do improviso, e concentram todos os seus esforços em capturar o coração do público, de modo a arrancá-los, por um momento, da consciência do tempo que passa, lançando-o num universo idílico por meio da absoluta alteridade. Artistas realmente sabem o que é renunciar a si mesmos para trazer à tona algo que os ultrapassa. Mambembes são os influenciadores e campeões aposentados que ainda não puderam, mesmo beirando os 50 anos, capturar com fineza essa peculiar graça da vida.


PS: Prestigie o Circo Spacial, em cartaz todos os finais de semana em diversos horários. E não, leitor, isso não é matéria patrocinada. Eles são realmente bons e o espetáculo vale a pena.

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