BRUNA TORLAY丨História do comunismo da Brasil Paralelo decepciona

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

No final do ano passado, traduzi para a Faro editorial uma das obras mais didáticas e refinadas que já li a respeito da história e impacto social do comunismo. O autor é o historiador romeno Lucien Boia, que evidentemente não é tratado com todo o respeito que merece nas altas rodas acadêmicas mundo afora por ser claramente anticomunista, embora profundo conhecedor da mitologia comunista e o exato oposto de um panfletário histérico.

Mas parece não ter sido esse o perfil de intelectuais estrangeiros de renome internacional selecionados pela produtora Brasil Paralelo para contar a saga do comunismo, desde sua gênese no conturbado contexto de miséria social da Europa novecentista, até os impactos mais catastróficos operados por essa cultura sobre milhões de seres-humanos através de sua longa história.

Assisti ao primeiro episódio e percebi imediatamente que a obra Principais correntes do marxismo de Leszek Kolakowski, foi uma referência importante para o roteirista da empreitada. Percebi que a ideia era começar explicando a doutrina marxista no contexto que lhe deu origem, imaginando que o desenvolvimento do comunismo, assim como suas consequências catastróficas, seriam objeto de episódios posteriores. Ainda assim, notei um problema que beira a obviedade, e talvez esteja na origem da onda de manifestações contrárias à obra recém-lançada.

Falarei por mim, uma vez que não pude ouvir os fundamentos da crítica do canal Alta Linguagem, por exemplo, que até mereceu uma resposta por parte da produtora. Na verdade, vi apenas um corte de 2 minutos no X protagonizado por Daniel Miorim, ali comentando a resposta de Lucas Ferrugem ao exame crítico do canal Alta Linguagem.

Meu ponto a respeito da produção não é polêmico, mas lógico.

Neste primeiro episódio, o marxismo de Marx é exposto ao público quase inteiramente em jargão marxista, do ponto de vista historiográfico. O exemplo mais flagrante é a redução de quatro fatos históricos distintos (guerra civil inglesa, Revolução gloriosa, Revolução Francesa e Independência americana) à categoria “revoluções burguesas”, típica da historiografia marxista tradicional, que procura explicar o movimento da história em termos de luta de classes, de forma que a burguesia é interpretada como oponente da aristocracia, tal como será o proletariado interpretado como oponente da burguesia, quando esta alcança o poder. Nos primeiros vinte minutos, além do jargão historiográfico marxista usado como teia simbólica de reconstituição da teoria de Marx, salta aos olhos o juízo segundo o qual a guerra de independência dos EUA foi a “primeira revolução anticolonialista da história”, categoria esta igualmente extraída da leitura marxista dos fatos históricos, derivada, obviamente, da própria filosofia da história de Marx.

Na prática, sempre que um marxista for explicar o marxismo (de Marx, de Trotsky ou de Stalin), ele o fará mobilizando o referencial simbólico (ou mitologia) de Marx, de modo que a reconstituição histórica da fundação do comunismo acaba comprometida pela mitologia comunista em torno da fundação do comunismo. Por que isso é um problema?

Ora, é como se pedíssemos que historiadores adeptos de uma historiografia que falsificou a história reconstituíssem as razões de ser dessa historiografia necessariamente falsificadora. A falsificação macula, inexoravelmente, a imagem da teoria, ainda que o objetivo seja reconstituí-la com rigor intelectual.

Na prática, toda vez que se chama um historiador marxista para contar a história de qualquer coisa, incluindo a história do comunismo, teremos mescla de mitologia científica e relato histórico, ainda que seja correta a iniciativa de buscar reconstituir rigorosamente uma teoria, antes de passar ao exame das catástrofes que ela produziu. A ideia da Brasil Paralelo, ao que tudo indica, era fugir dos reducionismos panfletários da direita anticomunista brasileira, boa parte da qual desconhece completamente a história do comunismo. A solução, contudo, não ponderou que reconstituir essa história sob uma ótica invariavelmente falsificadora talvez não ajudasse muito. Essa foi a razão pela qual parte do público sentiu-se de volta à escola, ouvindo seu professor marxista lhe contar as origens intelectuais da teoria de Marx. Daí as críticas. 

Por isso eu resumi minhas impressões sobre o primeiro episódio dessa forma:

Como egressa da Universidade estadual de Campinas, posso citar uma lista imensa de historiadores marxistas de obra respeitável e grande gênio. De todos eles, meu favorito é Christopher Hill, que apontou diggers e levellers, grupos puritanos radicais atuantes na guerra civil inglesa, como precursores de um proletariado consciente pronto a insurgir-se contra a burguesia industrial no século XIX, entre outras coisas. O livro de Hill parece sólido e justo, mas na verdade é marcado por interpretações históricas absolutamente equívocas, as quais tive de corrigir em minha mente, tão cedo percebi a tendência inexorável dos mais eruditos historiadores marxistas à falsificação da história — nem sempre por malícia, mas necessariamente pelo dever de fazer a filosofia da história de Marx abranger uma realidade maior que ela.

Na prática, a história concreta é bem mais complicada, matizada e marcada pela diferença que jamais sonhou o jovem hegeliano materialista cuja teoria resume a história da humanidade inteira à meia dúzia de categorias redutoras. Em outras palavras, é impossível pedir a um marxista (ou a um universitário inteligente que absorveu as categorias marxistas em suas pesquisas e as vomita em todo e qualquer discurso) que reconstitua qualquer assunto sem submetê-lo à falsificação. Infelizmente, a direção do documentário parece não ter prestado atenção a esse pormenor, e o resultado foi algo semelhante às sessões do congresso do Instituto Liberal nas quais se convidava esquerdistas interventores para dialogar sobre a natureza da economia. A intenção pode até ser nobre, mas o resultado é invariavelmente improfícuo.

Portanto, ao contrário do que pensa Lucas Ferrugem, o único trabalho sobre a história do comunismo de valor seria aquele atento a não confundir a imaginação do público com as falsas categorias da historiografia marxista. Em outras palavras, só é possível fazer um documentário de valor deixando de fora historiadores incapazes de examinar o comunismo sem evocar a mitologia comunista. Quando o lado de lá é um enredo de mentiras, fica complicado pedir-lhes ajuda para reconstituir da forma mais justa a tal da verdade.

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6 COMENTÁRIOS

  1. Excelente crítica de Bruna Torlay. Houve estranhamento, sim . O bom mocismo da Brasil Paralelo, introduziu a análise do Comunismo pelas mentes enaltecedoras e falsificadores, como a pedir desculpas por pretender criticar essa seita. A confusão na imaginação do público leigo já foi criada. E a estética vermelha do documentário, para chegar no sangue derramado pelo comunismo, deixou a predisposição imaginativa do público com a expectativa de uma série de Netflix explorando violência pela violência. O arcabouço teórico escolhido já garantiu agradar a gregos e troianos e não ferir suscetibilidades. Desanimei da sequência dos capítulos de mais uma novela mal contada que vai iludindo público desavisado.

  2. Críticas bem fundamentadas, que acabam por tornar-se panfletárias do referido documentário “mal elaborado”. Penso que, à luz de tais críticas, o que faltou foi algo como um Disclaimer: “as opiniões aqui expressas não passam de definições do comunismo, feitas por comunistas, com a interpretação enviesada da história que lhes é própria. Continue assistindo. Talvez você se surpreenda”.
    Fiquei deveras curioso pelos desdobramentos dos próximos capítulos.

  3. Ainda não entendi a precipitação, o orgasmo precoce tende a escusas futuras.
    Serão seis os capítulos e a introdução (primeiro capítulo) sequer foi interpretado pelo público leigo e iletrado.
    Podemos aguardar ou nos investiremos no manto da soberba e ao primeiro parágrafo lido já temos desenhado a síntese da questão?

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