ISRAEL SIMÕES | Racismo estruturado

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

“Quando um homem já fez aquilo que considera ser o seu dever para com o seu povo e o seu país, ele pode descansar em paz.” Assim declarou Nelson Mandela, pai das frases clichês e das empreitadas comunistas no continente africano, resumindo o sentimento de um homem cuja vida foi dedicada não à vocação pessoal, mas à emancipação coletiva. Ciente de que a palavra povo desperta, de imediato, um alento para quem tema a solidão, o Nobel da Paz sacramenta o enredo obrigatório da modernidade: negar Deus, a salvação, o chamado individual, e diluir-se na agenda de uma política identitária.

Feminismo, marxismo e corporativismo são alguns dos guarda-chuvas sob os quais o cidadão da cidade grande, desgarrado de sua parentela, da comunidade, da fraternidade religiosa e dos anseios nacionais, pode se abrigar e se integrar, ainda que por laços frágeis. Mulheres apoiam mulheres, pobres apoiam pobres, advogados apoiam advogados, médicos apoiam médicos, brasileiros apoiam brasileiros. Distante da realidade, mas funciona no discurso. Al fin y al cabo, o que esses grupos forjam é uma sensação, um pathos, uma emocionalidade lastreada no simulacro de povo, como aquela experimentada por apoiadores do ex-presidente Bolsonaro aplaudindo policiais em meio às manifestações de rua, ao som do hino nacional, no hastear da bandeira verde e amarela.

Na prática, o que esses grupos vivenciam é a fofoca, a sacanagem ou simplesmente a desorganização. Quem nunca ouviu uma cabelereira falar mal das companheiras para ampliar sua clientela? Da mesma forma as salgadeiras, os caminhoneiros, os pedreiros, as enfermeiras, os proletários, os conservadores, os olavetes, os cristãos não parecem muitos dispostos a criar redes nas quais o bem comum sobrepuja as ambições individuais. Só mesmo a cabecinha tonta de Marx para conceber uma ideia dessas.

Enquanto os homens manjam as rolas para apontar o dedo aos menos dotados, as mulheres são mais imediatas, falando mal umas das outras a partir do que é mais aparente como cabelos, unhas e looks mal combinados. A guerra dos sexos parece mais um conteúdo para programas de humor do que uma realidade objetiva. De fato, não existe vínculo humano mais forte do que a conjunção carnal e amorosa entre homem e mulher. A experiência do romance, com todas as fantasias, fetiches e deslumbres por ela evocadas, solapa na base a ambição feminista de ver uma multidão de mulheres rasgando sutiãs e bradando, histéricas, contra as opressões do patriarcado. Pelo menos no Brasil podemos apostar que ainda existem mais marias chuteiras do que militantes anti-gillette.

Talvez a imagem mais forte de irmandade, na era moderna, ainda seja a dos companheiros de trincheira: a aliança militar. Mas a julgar pelas manchetes dos noticiários hoje, esta é mais uma unidade que, no Brasil, já se fragmentou em conluios e traições.

É o que constatamos ao ouvir Carlos Baptista Júnior, ex-comandante da Força Aérea Brasileira, declarar à Polícia Federal ter presenciado o ex-comandante do Exército, general Freire Gomes, ameaçar prender o ex-presidente Jair Bolsonaro caso ele acionasse uma das medidas constitucionais de exceção. Já imaginaram a cena? Justo o presidente que mais concedeu benefícios à carreira militar, que dedicou toda a sua vida política para limpar o nome de colegas de farda defenestrados pela história oficial como Brilhante Ustra, algemado e preso por se opor à eleição duvidosa de um comunista ex-presidiário?

Mas Mandela não morreria angustiado se fosse brasileiro. Se não possuímos uma noção exata do mito civilizatório que nos identifica enquanto povo, se menos fidelidade ainda temos a qualquer agrupamento menor que seja dele derivado, parece haver uma exceção: a cor da pele. Os brasileiros são a audiência perfeita para absorver a versão mais pobre de etnicidade produzida pela modernidade: a segregação racial americana nos moldes da cultura woke.

E a maior prova de que estamos, de fato, transitando em nossa mentalidade é a guinada segregacionista da nossa cultura popular atual.

Quando Boninho decidiu dividir os participantes da nova edição do Big Brother Brasil entre “camarote” e “pipoca”, ressaltando as diferenças de origem entre celebridades e anônimos selecionados para o programa, ficou claro que a Globo queria acrescentar uma nova camada de rixa para entreter o público. Homens contra mulheres, ricos contra pobres, digladiando-se pelo prêmio de um milhão e meio de reais. O destaque para as profissões dos participantes é mais uma forma de gerar identificações e a formação de torcidas: uma vendedora ambulante, uma dançarina, uma trancista, um instalador de pisos, uma confeiteira, um motorista de aplicativo, cada um agregando, em torno de si, os que sofrem as agruras da mesma batalha laboral diária.

Esse caldo cultural dentro de uma casa vigiada 24h, no entanto, seria insuficiente se não fossem as diferenças de cor de pele. Pelo menos para esta geração.

Foi assim que o participante Davi ganhou espaço logo nas primeiras semanas de confinamento. Novo queridinho dos jornalistas, das páginas de fofoca, das atrizes globais em decadência e dos bots, já tendo conquistado mais de 7 milhões de seguidores no Instagram em menos de dois meses de programa, Davi é um rapaz jovem, hétero, pobre, motorista de aplicativo e negro. Acima de tudo, negro.

Não que a internet não esteja discutindo os modos aparentemente grosseiros com que ele discute com as mulheres dentro do programa; o fato dele ter bradado “sou homem, não sou viado não!”; o episódio em que ele chamou um participante acima do peso de “calabreso”; ou ainda, a forma incisiva com que tentou desqualificar a trajetória profissional de outro participante, exaltando seu passado sofrido como vendedor de água na Lapa, em Salvador. Todos os cards estão sobre a mesa, mas sendo Davi um moço negro, todas as agendas caíram por terra, ao ponto de Wanessa Camargo, já fora do programa, ter pedido desculpas públicas por suas críticas ao participante desafeto, dizendo que elas seriam consequência de um inconsciente “racismo estrutural”.

Essa semana Yasmin Brunet, última eliminada do BBB, chegou a ser pressionada, ao vivo, por Ana Maria Braga para confessar que suas desavenças com Davi também eram fruto do racismo, o que rechaçou com veemência.

Muito esperto em manipular os discursos identitários, Boninho impediu Davi de lançar um balde de água contra a participante Leidy Elin na semana passada, depois dela ter jogado suas roupas na piscina. Leidy também faz parte do grupo de anônimos do programa, é de família humilde, mulher e…negra. Sem a acusação de racismo para justificar mais uma desafeta, provavelmente a pauta feminista ganharia força contra o favorito da Rede Globo caso a vingança fosse levada a cabo (na rede X, antigo Twitter, o termo “mucama” ficou entre os mais comentados na última terça-feira, uma referência ao fato de Leidy Elin ser amiga de Yasmin Brunet e desafeta de Davi no reality show).

Alcançando quase 30 pontos de audiência no horário nobre, o BBB 24 vai consolidando a trama na qual a identidade de um povo transforma-se em servidão a projetos de poder, especialmente quando o ideário coletivo é tão camaleônico, conforme o interlocutor que se queira derrubar. Se as forças identitárias parecem pouco capazes de gerar vínculos de lealdade mútua, a segmentação étnica ainda é a mais promissora forma de “dividir para conquistar”.

Fomentar conflitos raciais no Brasil é objetivo prioritário da aliança internacional comunoglobalista e parece que a meta acaba de ser batida.

Somos oficialmente um país que sofre de racismo estruturado.

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