BRUNA TORLAY丨Explicar o pensamento e desenhar a explicação

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Expor um pensamento é estar automaticamente sujeito à incompreensão do próximo. Daí que seja muito frequente a necessidade de explicar o que se pensou e disse. Nem sempre basta. Muitas vezes é preciso também “desenhar” a explicação, metáfora para “mastigar” a enunciação de todas as premissas que nos conduzem a determinada conclusão, evidenciando, ainda, os detalhes mais óbvios em torno de todo o assunto. Por isso Olavo de Carvalho dizia que, no Brasil, cumpria não apenas explicar o pensamento, como também desenhar a dita explicação.

Ontem elaborei um paralelo entre a crise moral brasileira e a crise moral que atravessa o mundo muçulmano. Quanto à crise brasileira, tomei como exemplo a sua última manifestação gritante, a saber, o assassinato de inocentes seguido de solução e punição do crime por aqueles que haviam encomendado um outro crime, pois são chefes de uma facção criminosa. É um caso exemplar de nossa crise moral, que se dissipa de modo generalizado, como o cerne de um foco de luz que projeta raios em todas as direções, produzindo uma expansão indefinida e crescente. Mas tive de explicar que usar aquele caso de exemplo não significava crer que a crise moral profunda atravessada pelo povo brasileiro tenha começado ontem e no Rio de Janeiro. Em vez de usar a imagem do foco de luz estabelecida nesse artigo, justapus por meio de exemplos concretos o alcance da crise, que envolve do proprietário de um quiosque a um ministro de Estado, ambos semelhantes na aparente indiferença diante da barbárie em si; mais preocupados em tocar, simplesmente, suas missões individuais.

Cometi outra imprudência ao expor meus pensamentos. Indiquei como origem remota da crise moral no mundo muçulmano a separação inegociável entre fé e razão ocorrida a partir do século IX, vertente teológica que pôs abaixo a influência da filosofia grega na cultura islâmica e interpretação do Alcorão por teólogos racionais. Essa tese foi elaborada por Robert Reilly e tomei conhecimento dela por um estudioso de Platão que aponta o nominalismo como marco da tradição filosófica anti-platônica, ou avessa à transcendência. O nominalismo contém uma visão de inteligência que se desdobra na visão teológica segundo a qual artigos de fé não podem ser demonstrados racionalmente, competindo-nos obedecê-los cegamente. Ao mesmo tempo, afirmei que a aversão de grupos terroristas ao Estado de Israel é um problema político, uma vez que não há conflito religioso entre judeus e muçulmanos residentes em Israel, e o grupo Hamas, por exemplo, controla Gaza após ter tomado o poder à força, via guerra civil, das autoridades palestinas. E agora me cabe explicar esse pensamento e, por garantia, já deixar aqui desenhada a explicação.

A causa da crise moral profunda que atravessa ocidente e oriente, Brasil e Mundo muçulmano não é especificamente religiosa, mas espiritual no sentido amplo do termo. A causa da visão teológica que hoje é dominante no islã, segundo Reilly, é uma vertente anti-intelectualista, isto é, um modo de pensar que estabelece a insuficiência da razão humana diante da realidade. Se a razão não é capaz de capturar a essência das coisas, a estrutura última da realidade, que traduzimos simbolicamente em parâmetros, os quais guiam nossa consciência, permitindo-nos avaliar a virtude ou vileza de nossos, atos, por exemplo; se a razão não é capaz de conhecer os princípios por trás de todas as coisas, não podemos demonstrar a verdade dos mandamentos divinos. Logo, teologia é ciência descritiva e positiva das leis dadas, não argumentação racional capaz de fundamentar a verdade das leis dadas na realidade. Essa noção de inteligência promulga não apenas a expulsão da argumentação racional do domínio da fé, como também rebaixa o ser-humano a criatura incapaz de conhecer a razão de ser de seus atos para, em seguida, reconhecer se age ou não em conformidade com a verdade revelada. A religião em si mesma não é a causa desse problema. Aqui, estamos no campo da incompetência intelectual mesmo. Falta de inteligência. Distorção de conceitos. Análise insuficiente de objeções sólidas ao próprio raciocínio. Burrice. Um problema humano, que em nada remete ao divino. Aliás, é um problema gêmeo ao que nos aparta do divino, uma vez que a insistência na burrice é manifestação, em última instância, de orgulho, um pecado capital.

Ainda segundo Reilly, a forma de lidar com o certo e o errado de grupos terroristas manifesta de forma exponencial esse desvio fundamental, produzindo, consequentemente, uma distorção do sentido próprio à religião, ora evocada como justificação de atos que, por natureza, são perversos e criminosos. A religião em si não é a causa real de alguém acreditar que mata o próximo em nome de Deus. A causa é a crença cega (por orgulho) em teólogos equivocados (manifestação da burrice), que distorcem o sentido da religião em nome — no caso específico do Hamas — de finalidades políticas. Como essa causa formalmente intelectual afeta a vida religiosa, estamos diante de uma crise moral profunda consequente de um problema espiritual de amplo espectro — mas que começa na razão humana que enxerga mal a si mesma e, consequentemente, tudo o que analisa.

Distanciamento da religião; recusa da religião verdadeira; negação da religião podem ser estabelecidos como causa? Não sei. Quando leio Ockham, o franciscano nominalista que (ao lado de outros) defendeu assiduamente a visão teológica voluntarista (esboçada no parágrafo anterior), não tenho condições de dizer se ele queria ou não destruir a força do cristianismo na Europa. Mas posso afirmar que ele se contradiz; que não responde corretamente às objeções de exame obrigatório; que reduz e simplifica erroneamente o que não é passível de redução e simplificação. Posso dizer que ele erra, mas por que o faz, só Deus sabe — a não ser que ele tenha deixado pistas em seus diários íntimos, dos quais, honestamente, não tenho notícia.

Que o nominalismo produziu danos à vida espiritual do ocidente como um todo, é fato, estando nas origens da crise moral profunda que atravessamos, e cujos sinais, no Brasil, são brutalmente claros.

Por último, queria pontuar a causa de se precisar, com tanta frequência, explicar pensamentos e desenhar a explicação. Desaprendemos a pensar segundo as categorias, regras e princípios que garantem intercomunicabilidade. Consequentemente, temos dificuldade de captar as entrelinhas no pensamento de quem ouvimos. Ainda assim, comentários que ocultam perguntas possibilitam desenvolvimentos e explicações, de modo que, na lama em que estamos todos, agradeço a insistência dos que os manifestaram, obrigando-me a compor essas notas de pé de página ao vídeo em questão.

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