BRUNA TORLAY丨Como escolher livros em Estados de Exceção

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

De tudo o que faço, minha tarefa predileta é indicar livros para pessoas em busca de novidades interessantes. Eu adoro divulgar reedições de antigos romances, traduções tardias de estudos obrigatórios, relatos verídicos da miséria política mais devastadora, poesia lírica, épica e dramática e, sobretudo, literatura filosófica. O pouco caso que o regime de exceção vigente em nosso país faz da circulação de papel me estimula todos os dias a continuar.

Na última semana, em meio à elaboração da terceira aula sobre o último diálogo que Platão escreveu, aquele sobre As Leis, comecei a ler as Questões de Moral e Educação do Émile Boutroux. Nunca tinha ouvido falar. O livrinho é ótimo. Um conjunto de ensaios curtos; aquela leitura que me descansa, uma vez que não me obriga à exposição posterior.

O primeiro ensaio discerne as três grandes morais que concorrem em nossa alma: a grega; a cristã e a moderna. À primeira, o autor chama “estética”. A filosofia grega concebe a moral como a expressão da ordem do mundo, ou cosmo. Beleza, na alma grega, é a harmonia plasmada no mundo dos fenômenos. As virtudes correspondem ao agir moderado, equilibrado, harmônico, na medida. A inteligência é a sede da moralidade, cujo leme é a razão, nascida para singrar o mar infinito dos desejos – a parte maior da alma que é preciso disciplinar.

A segunda grande moral, a cristã, é chamada religiosa. Mas embora o livro não tenha sido recolhido, certamente poderá ser mal visto em virtude dos elogios excessivos a esse modelo, razão pela qual passamos à terceira moral: a moderna ou científica. Afinal, é ela quem reina absoluta na tempestade do dissenso moral, fruto da liberdade ilimitada de pensamento, que orienta cada homem a ser medida de todas as coisas para si; ou para todos, caso você pertença ao tribunal maior da nação, cujas funções excedem a ideia antiquada dos gregos de agir conforme a natureza, o que significa disciplinando o desejo e mirando no meio para se ater às virtudes.

É um livrinho interessante para se ter em casa quando se vive sob Estados de Exceção, um regime político diferente dos Estados de direito, nos quais a defesa da caridade como centro da vida moral não é necessariamente enquadrada como demonstração inequívoca de intolerância e discurso de ódio.

Voltando à lista, todo mundo deveria ter algum daqueles livros de prisioneiros para prisioneiros. Em estados de exceção, nunca se sabe quando o ministro da Justiça achará por bem prendê-lo preventivamente. Será preciso repensar a vida e atualizar o sentido que até o dia anterior lhe atribuíamos, quando chegar a nossa vez. Nesse ponto, a versão para jovens leitores do Em busca de sentido, do Viktor Frankl, pode ser oportuno. Considerando a fase avançada de vigência da prisão coletiva baseada em  controle da informação, é um remédio de amplo espectro até para quem está preso tão somente às regulações, embora livre das grades.

Uma reflexão interessante que tenho feito: a forma mais econômica de recriar os Gulags é de fato a sociedade hiper-informatizada, capaz de concentrar num aplicativo o rol inteiro de necessidades de cada contribuinte. É um expediente de gênio, fazer de cada um seu próprio denunciante, tudo por meio de um aparelho comprado individualmente (logo, sem gerar gasto público E gerando arrecadação), mas coletivamente condicionante e burocraticamente acessível. Nesse sentido, ainda considerando o baixo interesse do Estado de Exceção vigente em recolher livros, pode ser útil comprar qualquer porcaria impressa para deixar um bilhete para a família, ou um código de recuperação de patrimônio inconfiscável. Aqui, o ideal é escolher clássicos batidos em domínio público, de preferência nas edições da Martin Claret, que de tão baratas você não terá pena de usar para além da biblioteca.

Livros podem ser úteis até às pessoas mais iletradas, quando elas descobrem o preço de sua recusa sistemática ao letramento. Contudo, a depender dos humores dos ministros de estado, ou da necessidade de se criar bodes expiatórios inusitados, servem sobretudo a patriotas desesperados de humores sensíveis. Se você planeja desafiar as regras do estado de Exceção, é bom reservar parte considerável de seu orçamento para uma biblioteca. Nunca se sabe se os familiares vão acertar nos títulos, isso se as visitas permitirem a entrega dessa espécie de objeto. Nada como valer-se desse momento de incerteza para memorizar títulos estratégicos e os reler, no tecido da consciência, no dia em que eles se tornarem imprescindíveis.

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