BRUNA TORLAY丨A essência do carnaval

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Se eu fosse usar esse espaço para manifestar meus sentimentos com relação ao carnaval, ele acabaria vazio. Não sinto nada pelo carnaval. Nem amor, nem ódio. Sinto o exato oposto do amor: a indiferença. E isso me põe na interessante vantagem de observá-lo como um velho fleumático a contemplar o horizonte do conforto de sua varanda.

A festa da carne não redime ninguém; não ensina nada de excelso a quem dela participa; não perde completamente nem salva de forma alguma. É a expressão da carne provisoriamente liberta do cabresto a ela imposto pela consciência moral.

Felizmente temos consciência moral. Ninguém gostaria de ser um composto de carne a voltear perenemente mundo afora, sem direção. Seria como lutar inúmeras batalhas sem descanso nem pausa para repensar a estratégia. Um salto direto ao abismo. Tratamos mal a consciência, mas nos agarramos a ela como a uma tábua de salvação em meio ao oceano em fúria.

É típico da porção nossa que responde ao desejo, contudo, tentar independência. Basta a consciência cochilar e eis nossa pessoa envolvida em alguma confusão. É da natureza humana a tensão permanente entre expressão do instinto e impulso à transcendência; e da natureza humana que sua porção inferior se rebele. Ela não sabe o que fazer consigo, mas ousa se impor.

O carnaval é a celebração desse gesto, que nos atravessa ao longo de toda a vida, com mais ou menos chances de arrastar-nos ao inferno. Com ou sem carnaval, volta e meia a desordem e a imoderação, em múltiplos aspectos, aparecem para uma visita. O carnaval é a regra prevista em calendário dessa visita, e a multidões inteiras.

Honestamente, a elevação desse impulso em festa me parece uma inteligente estratégia da boa e velha consciência moral entretida com a tarefa de, ano após ano, reformar o seu cabresto a contento, retrançando as cordas, limpando as manoplas e polindo os metais. Como a astuta mãe que, desejando ver o filho pequeno e rebelde o mais limpo possível, aponta-lhe a banheira repleta de espuma, copinhos e castelos:

“Vá reina-lo!”

Após uma porção de estripulia, durante a qual a mãe arruma o quarto e prepara a cama, o sono vence o pequeno tirano e ele implora por sossego.  

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2 COMENTÁRIOS

  1. 👏👏👏Compartilho dos mesmos pensamentos. Vejo, porém, contextualizado para nossos últimos 2 séculos, talvez menos. Mesmo sempre considerada pagã aos olhos cristãos, seus objetivos iniciais, salvo engano meu, não eram esses de entorpecer e emporcalhar a realidade, ludibriando os fugitivos da consciência. E sim, “hoje em dia” não serve pra nada.

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