Se eu fosse usar esse espaço para manifestar meus sentimentos com relação ao carnaval, ele acabaria vazio. Não sinto nada pelo carnaval. Nem amor, nem ódio. Sinto o exato oposto do amor: a indiferença. E isso me põe na interessante vantagem de observá-lo como um velho fleumático a contemplar o horizonte do conforto de sua varanda.
A festa da carne não redime ninguém; não ensina nada de excelso a quem dela participa; não perde completamente nem salva de forma alguma. É a expressão da carne provisoriamente liberta do cabresto a ela imposto pela consciência moral.
Felizmente temos consciência moral. Ninguém gostaria de ser um composto de carne a voltear perenemente mundo afora, sem direção. Seria como lutar inúmeras batalhas sem descanso nem pausa para repensar a estratégia. Um salto direto ao abismo. Tratamos mal a consciência, mas nos agarramos a ela como a uma tábua de salvação em meio ao oceano em fúria.
É típico da porção nossa que responde ao desejo, contudo, tentar independência. Basta a consciência cochilar e eis nossa pessoa envolvida em alguma confusão. É da natureza humana a tensão permanente entre expressão do instinto e impulso à transcendência; e da natureza humana que sua porção inferior se rebele. Ela não sabe o que fazer consigo, mas ousa se impor.
O carnaval é a celebração desse gesto, que nos atravessa ao longo de toda a vida, com mais ou menos chances de arrastar-nos ao inferno. Com ou sem carnaval, volta e meia a desordem e a imoderação, em múltiplos aspectos, aparecem para uma visita. O carnaval é a regra prevista em calendário dessa visita, e a multidões inteiras.
Honestamente, a elevação desse impulso em festa me parece uma inteligente estratégia da boa e velha consciência moral entretida com a tarefa de, ano após ano, reformar o seu cabresto a contento, retrançando as cordas, limpando as manoplas e polindo os metais. Como a astuta mãe que, desejando ver o filho pequeno e rebelde o mais limpo possível, aponta-lhe a banheira repleta de espuma, copinhos e castelos:
“Vá reina-lo!”
Após uma porção de estripulia, durante a qual a mãe arruma o quarto e prepara a cama, o sono vence o pequeno tirano e ele implora por sossego.
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👏👏👏Compartilho dos mesmos pensamentos. Vejo, porém, contextualizado para nossos últimos 2 séculos, talvez menos. Mesmo sempre considerada pagã aos olhos cristãos, seus objetivos iniciais, salvo engano meu, não eram esses de entorpecer e emporcalhar a realidade, ludibriando os fugitivos da consciência. E sim, “hoje em dia” não serve pra nada.
Não consegues ver absolutamente nada que preste, Rubens?