SANTO CONTO | A redenção de Frei Tato

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Inspirado nas aulas do curso O Bom Combate, de Bernardo Küster

Frei Tato – este era o seu cognome entre os companheiros – não havia conseguido dormir e, para sua própria surpresa, passara a noite rezando, apegado ao Rosário que herdara da avó materna. Ele não era um frei, na verdade, havia deixado o seminário dos Dominicanos no último ano, seduzido pela Revolução. Os companheiros chamavam-no de Frei um pouco por troça, um pouco por certa reverência a um quase membro do clero presente na ação revolucionária (muitos ali já haviam sido católicos fervorosos, e ainda guardavam enraizado certo temor a Deus, mesmo que tentassem escondê-lo).

Enfim, ele estava com o grupo havia um ano já, passara por todo treinamento com armas, estudara com os mesmos empenho e método de quando era seminarista todos os teóricos marxistas que lhe puseram à mão, conhecia de cor o Manual do Guerrilheiro Urbano e era um soldado exemplar: cumpria todas as suas demandas à risca, no prazo, sem questionar; evitava, apesar das tentações, envolver-se com as mulheres do grupo, o que frequentemente provocava brigas e até dissenções entre os companheiros; não bebia, não usava qualquer tipo de droga, estava sempre sóbrio e atento, alerta, pronto para o combate.

E o dia do combate havia chegado. Os superiores entenderam que ele estava pronto. Agora, Frei Tato teria que aplicar o que aprendera nos livros e nas aulas do Companheiro Simão. Participaria do assalto a um banco, um dos grandes, e para ele, que seria um dos que garantiria a segurança dos companheiros e o sucesso da ação, a ordem era atirar para matar em quem quer que representasse perigo, fosse policial ou civil. Estava tudo esquematizado em sua cabeça, lera e relara os planos várias vezes, havia repassado com os companheiros todo o roteiro, inclusive com os planos B, C e D para as eventuais complicações. Tudo lhe parecia bem simples e fácil, mas… Passara a noite em claro, rezando, ele que tantas vezes naquele último ano demonstrara desprezo pelo que chamava de “devoção ingênua de beatas e carolas”…

Logo cedo, não quis tomar café, mas foi obrigado pelo Companheiro Simão, tinha que estar bem alimentado para a ação do dia – pouco depois, vomitou tudo no banheiro. Saiu do apartamento nervoso, irritadiço, tentando parecer concentrado, mas não conseguia. As mãos tremiam, ele tentava disfarçar escondendo no bolso do casaco. Em uma delas segurava sua arma, e na outra apertava com tanta força o crucifixo do Rosário da avó, que chegou a sangrar. Chegando ao banco a ação foi rápida e sem complicações. Enquanto os companheiros limpavam os caixas, ele e outro colega vigiavam as pessoas deitadas com a cara no chão, e atentos apontavam suas armas para os seguranças rendidos. Lá fora, dois carros com os motores ligados aguardavam.  Iam saindo da agência quando da esquina ouviram dois PMs dando voz de prisão e já atirando. Uma das balas resvalou no braço da Companheira Maria. Ele sabia o que tinha que fazer, mas travou: ficou com a arma apontada para os dois PMS, paralisado, sem conseguir puxar o gatilho. Foi alvejado duas vezes e caiu de joelhos. Enquanto escutava os pneus dos carros cantando e os companheiros partindo em meio ao tiroteio, ouviu a Companheira Vana xingando-o de “padreco de merda”…

Ajoelhado ainda, olhava para os dois policiais caídos na calçada, haviam sido atingidos por disparos certeiros. A visão começou a turvar e sentiu um gosto de sangue na boca. Entre a multidão que começou a se formar em torno, viu uma batina. Ergueu a cabeça para o padre, estendeu-lhe os braços. O sacerdote abaixou-se, amparou-o e o deitou na calçada. Sirenes de viaturas e ambulâncias se misturavam a gritos desesperados, ao zumzum e aos cochichos das pessoas ali em roda, aos seus pensamentos em turbulência. Olhou para o padre e disse, já com a voz embargada:

– Padre, os meus pecados, os meus pecados…

– Calma, filho, calma…

– Mas os meus pecados, padre, os meus pecados, eu…

O jovem agora estendia o Rosário, que pendia de sua mão sangrando. O sacerdote perguntou tranquilo:

– Vocês se arrepende deles, meu filho?

– Sim, padre, sim! Eu…

– Então seus pecados estão perdoados. Eu te absolvo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo…

– Amém!

– Agora descansa, filho – o padre via o sangue escuro escorrendo de uma das feridas, o rapaz não tinha muito tempo – e reze comigo um Ave-Maria, se puder. Vamos?

– S-sim, padre! A-ave Maria, cheia de graça, o S-senhor…

A oração foi terminada pelo padre. Tato já havia ido. Acompanhando do seu Anjo da Guarda, ele rumava para o Purgatório. Estava salvo.


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