VITOR MARCOLIN | Praga de Uru

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Notícias sobre a bebê Indi Gregory chegam ao interior paulista

Indi Gregory morreu. A bebê britânica de oito meses sofria de uma doença mitocondrial considerada “incurável”. A doença, porém, não foi a causa primária de sua morte. Não. Indi morreu porque os médicos decidiram desligar os aparelhos que a mantinham viva. A informação foi confirmada nas redes sociais pelos pais da garotinha. E a morte da bebê chamou atenção de meio mundo de gente: desde o Papa até a primeira-ministra italiana, que, pelo que parece, fizeram das tripas coração para evitar a sentença de morte da criaturinha. Mas foi tudo em vão, porque nada impediu os médicos súditos do Rei Charles de arrombarem as portas do Limbo para Indi entrar.

Ontem, fui testemunha da indignação sincera de um sujeito improvável: Chico Curupira, um parente distante que vive no interior paulista. Homem rústico e insensível. A origem do apelido é fácil: assim como Indi, Francisco tem uma doença considerada “incurável” que o faz andar feito aquele tinhoso do folclore brasileiro. É evidente que chamá-lo de Curupira é um exagero, porque a obliquidade dos seus pés não é tão excessiva.

Definitivamente, Chico Curupira não tem vantagem sobre o seu perseguidor quando entra na mata. Nada de pegadas invertidas a confundir o algoz que empunha o facão. Ele, porém, não se ofende com o apelido. Não. Primo Chico deve sentir uma pontinha de orgulho da alcunha Curupira — a prova é o meio sorriso de satisfação que ele esboça sempre que ouve chamamento.

Chico estava conosco em São Paulo havia já três dias. E falávamos sobre coisas que um caipira duvida. Era a tragédia do mundo: o Papa argentino, o presidente ladrão, a nova onda de perseguir judeus. “Ué!, que diacho é isso, prrimo?! Perseguirr judeu voltô à moda é?!”. Sim, primo, voltou, e com a conivência dos mesmos agentes políticos de sempre. Eu só me pergunto quando é que vão assumir de vez que o mal que engendram contra os judeus também está sendo preparado contra os cristãos.

Estávamos ocupados com temas desta natureza quando, sem cerimônia, Chico comentou sobre a bebê britânica. Eu, porém, antes de entrar na discussão, quis logo saber como ele, cidadão de Uru, município localizado para lá de Iacanga, onde o rio Tietê não mata por miasmas, sabia do que se tinha passado com a bebê na longínqua Inglaterra. “Ué!, prrimo, eu vi nas zinterrnéti. Os zômi já vieram instalá uai-fai lá na nossa morada. E óia, eu até já me torrnei assinante daquele jorrnal Di Telégrrafo“. Era o The Telegraph. Bom primo Chico!

Ele tinha a ciência das últimas notícias sobre a bebê Indi Gregory, e até me fez o favor de lembrar o nome do pai da pobre criatura. “É Din Grégori, prrimo”. Ah, sim, Dean Gregory. Obrigado, Curupira. Enquanto falava sobre o caso, primo Chico foi ficando vermelho, as veias a fazerem alto-relevo no pescoço robusto: “Óia, prrimo, lá em Uru tem um maledito dum dotô que teve o indecença de discuti cumigo. O torrto queria me fazê crê que aqueles zotro dotores que mataram a menininha é que tavam cá razão. Eu fiquei furioso! Quis passá aquele safado no facão — Deus que me perrdoe”.

Primo Chico persignou-se com devoção, deu um gole na boa pinga de Uru — seu presente — e arrematou: “Eu disse que tudo aquilo, prrimo, era uma grrande injustiça! Craro ué! Tá cerrto que cabe a Deus dicidi quem vivi e quem morre, mais aqueles zome não tinha o direito de desligá os apareio. Bastava devorrvê a pobre minina pros pai dela, ué! Se ela tivesse de morrê, que morresse em casa”.

Primo Chico é sincero comigo, gosto de nossas conversas. Enquanto falava sobre Indi Gregory, ele passava desajeitadamente as costas das mãos calejadas sobre o rosto a fim de conter as lágrimas de tristeza. “Óia, ocê vai me descurpando, viu, prrimo?, que aquele dotô de Uru é uma praga”.

***


Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2023

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor

CONTO丨Agenda

VITOR MARCOLIN | Quaresma