VITOR MARCOLIN | O pai do padre

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Chesterton: atual e atemporal

A mente criativa de Gilbert Keith Chesterton (1874 a 1936) deu à luz ao Padre Brown num estranho parto que durou 26 anos. A personagem do sacerdote que resolve crimes valendo-se de sua profunda compreensão da natureza humana – como um escolástico, um professor das antigas – foi delineada pelo escritor inglês em 53 contos publicados entre os anos de 1910 e 1936. Chesterton imprimiu nesta sua criação ficcional elementos de sua visão de mundo particular: agudo senso moral, ironia, justiça e caridade cristã. A bem da verdade, estes elementos jaziam como pano de fundo das ações públicas no ocidente antes do advento do mundo moderno – objeto da crítica chestertoniana.  

Chesterton legou uma obra singular. Em suas análises de cultura, política, religião e da efervescente dinâmica cultural entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, o escritor inglês destacou-se pela fina ironia que temperava as suas críticas à vida moderna. A aparente vitória do cientificismo, do niilismo, do materialismo, do relativismo e do ateísmo sobre a religião — que, como explica Modris Eksteins em A sagração da primavera, aconteceu imediatamente após a primeira guerra mundial – foi a semente deste tipo humano por nós bastante conhecido: o intelectual engajado nos movimentos revolucionários; homem profundamente desarraigado da vida comum.

“O futuro é uma parede branca na qual cada homem pode escrever seu próprio nome tão grande quanto queira. O passado já está abarrotado de rabiscos ilegíveis de nomes como Platão, Isaías, Shakespeare, Michelângelo, Napoleão”.  

Ao criador do Padre Brown nada incomodava mais do que a opinião largamente difundida em sua época — a primeira metade do século XX – de que o homem podia conduzir a sua vida absolutamente desvinculado do transcendente. Mas não só. Este escritor maravilhoso não se permitia cair no erro fácil de opinar sem um pingo de compromisso com a realidade: Chesterton amava o seu país, a velha Inglaterra, e teceu críticas bastante objetivas sobre a decadência cultural da nação que ele defendia com unhas e dentes.

Na Inglaterra dos primeiros decênios do século XX, Chesterton já observava a tendência fatal do homem comum, aquele sob a influência permanente da mídia, de se afastar da cosmovisão natural, orgânica e perene em prol dos novos paradigmas, dos novos “costumes” da classe falante. O escritor criticava abertamente a interpretação psicanalítica da condição humana, por exemplo. Mas a tônica do esforço crítico de Chesterton estava mesmo concentrada sobre o estilo de vida artificial, superficial, do tipo que leva o homem comum a desprezar o legado dos seus antepassados em prol de algo novo – jamais testado e aprovado pelo crivo do tempo. E ele tecia suas críticas com lucidez e um humor delicioso; não era um tradicionalista cafona, um falso moralista arrogante.  

“O homem moderno já não preserva recordações de seu bisavô, mas compromete-se a escrever uma detalhada e autoritativa biografia de seu bisneto”.  

Irônico e paradoxal, o autor dos contos do Padre Brown foi cirúrgico em identificar e atacar frontalmente os problemas do seu tempo. Mas ele o fazia de modo singular: para os ingleses dos anos 1910, 20 e 30 Chesterton era sempre atual, sempre lúcido em suas abordagens, mas sua crítica trazia consigo um quê de atemporalidade, pois o seu autor buscava na tradição cultural e religiosa do ocidente os seus referenciais. 

“É (…) um medo do passado: um medo não só do mal que há no passado; senão também do bem que há nele. O cérebro entra em colapso ante a insuportável virtude da humanidade. Houve tantas fés flamejantes, que não as podemos suportar; houve heroísmos tão severos, que não somos capazes de imitá-los; empregaram-se esforços tão grandes na construção de edifícios monumentais ou na busca da glória militar, que hoje nos parecem a um tempo sublimes e patéticos. O futuro é um refúgio onde nos escondemos da competição feroz de nossos antepassados”.  

Um antídoto: eis a melhor analogia que podemos fazer sobre o trabalho incansável do pai do Padre Brown. Porque profundamente preocupado em revelar para o homem comum – o leitor a quem ele se dirige com verdadeira caridade – as riquezas inestimáveis da cultura ocidental, Chesterton é atemporal; e porque singularmente didático e cativante seu estilo ainda hoje (talvez sobretudo hoje) pode nos conduzir à cura do orgulho que nos leva a desprezar a celebração de uma vida simples.  

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6 COMENTÁRIOS

  1. Muito bom, Vitor!
    Chesterton certamente é uma leitura imprescindível para os emergentes conservadores brasileiros. Montei inclusive uma Távola Redonda atualizada dos 12 cavaleiros pelo resgate moral do Ocidente, incluindo T. S. Eliot, Burke, Tocqueville, Kirk, Scruton, Berlin, Oakeshott, Voegelin, Popper, Strauss. Haveria uma cadeira para um brasileiro? Quem você distinguiria? Mário Ferreira dos Santos? Gustavo Corção? Nelson Rodrigues? Miguel Reale? Oliveira Lima? Roberto Campos? Olavo de Carvalho? Arlindo Veiga dos Santos? Eugenio Gaudin? Gilberto Freire? José Bonifácio?
    Escrevi um livro lançado no ano passado sobre o tema. Se quiser resenhar lhe envio um exemplar! Parabéns pelo trabalho! Abs

    • Obrigado pelo comentário, Jorge. Os autores que você citou, principalmente os brasileiros, precisam voltar a ser lidos com urgência. Você foi muito inteligente ao usar o termo “resgate moral” ao invés de “resgate cultural”; temos mesmo de tomar vergonha na cara! Adoraria ler o seu livro, Jorge, principalmente porque o tema da Esmeril de setembro será o bicentenário do divórcio, ops!, quis dizer independência; suponho que você fale, dentre outros temas e “vultos históricos”, sobre J. Bonifácio, certo? Por favor, escreva para agnusveritas@gmail.com

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