A morte é obrigada a esperar
Já era noite. Abri o computador munido da intenção de continuar a narrativa sobre o sujeito cuja morte não fora reconhecida pelo Estado. Mas eis que, juntamente com a luminosidade do ecrã, um pedaço de papel saiu do computador. Não obstante o cansaço do dia de labuta, não consumi mais do que cinco segundos para assimilar a diatribe que me ocorria: era um poema que eu, na véspera, copiara de uma antologia, e que ficara sobre o teclado do notebook. Às vezes, pratico caligrafia — arte injustamente malbarateada. Minha letra é, numa economia de adjetivos, correta. O poema, apesar da forma anacrônica, versa, em essência, sobre a realidade daquele sujeito que viveu no século XVIII e que, para o Estado, não morreu. É incompreensível, portanto, para os tatus de monóculo. A autoria é de Augusto dos Anjos, e o reproduzo integralmente aqui.
Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
— Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
Um, dois, três, quatro, cinco… Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais
Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!
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Beleza sepulcral…