Brincando de orangotango
“Um orangotango na missa. Taí uma imagem aproximativa do homem que viveu no período genérico conhecido como Idade Média”. Era a pensamentos desta natureza que eu me dedicava quando fui estorvado pela mulher rechonchuda que, involuntariamente, trombou em mim. No entanto, tirei vantagem do encontro, porque despertei para a realidade: o metrô lotara. E o livro quase foi ao chão. Se o fosse, eu jamais poderia recuperá-lo, pois ele seria impiedosamente pisoteado pela horda lerda de ogros paulistanos.
O livro em questão era O outono da Idade Média, de Johan Huizinga (1872-1945), um brilhante historiador e linguista holandês. O pesquisador já foi bastante elogiado pelo seu trabalho de investigação da política, cultura, religião e hábitos dos habitantes da Europa entre os séculos XIV e XV, o fim ou, como o tradutor — eu não leio em holandês — escolheu dizer, a “cessação” do melhor período da história da humanidade.
Evidentemente, a realidade é bastante complexa; a coisa não é “preto no branco” como o orgulhoso rapaz de bigode mustache crê. Coitado. O panorama religioso, político, econômico e cultural da Idade Média e, especificamente, do final, do “outono” daquela época tem uma abrangência infinita. Mas um meio relativamente eficiente de começar a entender o período é considerar que não havia entrechoques de cosmovisões.
O conjunto de valores morais, religiosos e, sob alguns aspectos, culturais da classe governante coincidia com o da classe governada. Entre o senhor feudal que exercia domínio sobre determinado lote de terra — e que nutria a consciência de que cabia a ele o dever moral de se sacrificar em prol da defesa desta terra e de seus habitantes — e o camponês que vivia do trabalho de cultivo havia uma só percepção da dinâmica da vida. O monstro do Estado ainda não havia sido parido.
A Idade Média foi o ápice da Civilização Cristã, e a simplicidade da vida — agora sim — era preto no branco: ou tudo ou nada. É o orangotango na missa. Ápice da Civilização Cristã… o que é um cristão? É o sujeito pecador consciente de que pode tornar-se santo. O que diferenciava o homem daquela época do sujeito que usufrui da malha ferroviária de São Paulo hoje é a disposição de encarar a vida com simplicidade.
O orangotango ouvia na missa “mas, porque és morno, nem frio nem quente, estou para vomitar-te da minha boca” e saía carregando a responsabilidade integral sobre todos os seus atos. Protegido da inimaginável atmosfera de confusão legada à humanidade pelo Estado Moderno, o bicho assumia a responsabilidade pelos seus atos de violência bárbara e de compaixão cristã quase que com a mesma naturalidade. Afinal, o que poderia haver para além disto?
Huizinga diz que “disputas e atos de violência iam de mãos dadas com a abdicação cerimoniosa de todo o orgulho, do qual eles são o contrário. (…) A alma apaixonada e violenta dessa época, vacilando sempre entre a piedade lacrimosa e a frígida crueldade, entre o respeito e a insolência, entre o desânimo e a licença, não podia dispensar as mais severas regras e o mais estrito formalismo”. Aparentemente, o produto de uma sociedade organizada desta forma é a tendência quase natural para o cultivo das virtudes reais, aquelas que ajudam o homem comprometido com a sua cosmovisão a cumprir com o seu propósito.
O historiador holandês faz uma crítica à modernidade: “Desde que o progresso político e a perfeição social passaram a ser fatores predominantes no consenso e se busca o próprio ideal na mais elevada produção e na mais justa distribuição dos bens, deixa de ser necessário imitar o herói, o sábio ou o santo”.
Se o homem moderno é mais higiênico, polido e educado que o homem medieval — o que Huizinga prova o contrário, em se tratando da polidez —, ele também é menos capaz de amar, de perdoar e, em suma, de viver com aquela inocência própria das crianças que, depois de se pegarem nos tapas, abraçam-se sem um pingo de ressentimento e voltam a brincar — de orangotangos?
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