VITOR MARCOLIN | Burocracia que vence a morte

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

O caso de Jean

O nome do professor era Denis, e, à entrada da Mário de Andrade, falávamos sobre Tocqueville, o ensaísta. O professor, como dito, era belga — país no qual se fala holandês, francês e alemão —, mas ele só se comunicava em francês e inglês. Calejado dos muitos anos de lide intelectual, o belga iniciara os seus estudos do idioma de Camões “havia cinco meses”, como ele mesmo dissera, sorrindo — suponho que estivesse satisfeito pelo domínio do verbo haver. Enfim. O caso é que o homem encontrou, nos manuscritos originais de Tocqueville, uma referência a um caso intrigante que o ensaísta francês estudara quando estivera viajando pelo interior do país a fim de coletar material para o seu O Antigo Regime e a Revolução, publicado em 1856. Era o caso de Jean, o jovem camponês que vivera no século XVII, e cuja morte a burocracia estatal não reconheceu. 

Para a minha sorte, o professor trazia consigo cópias do material. A tradução do inglês é de minha autoria, de maneira que o leitor tem a quem culpar pelas possíveis inconsistências da história. O texto original, em francês, havia sido escrito pelo próprio Tocqueville numa espécie de diário no qual o brilhante ensaísta registrara a progressão das suas pesquisas. Eu traduzi a versão em inglês, do professor belga, o que significa dizer que Alexis de Tocqueville foi traído duas vezes. Como dito, responsabilizo-me pelas incoerências. 

“Dia do Senhor, 17 de outubro do ano cristão de 1852.  

“Havia uma semana que eu alcançara a vila de Vézelay, lugarejo cujo acesso é difícil, pois o burgo localiza-se no cimo de uma montanha. Decidi, depois de instalado com relativo conforto num pouso destinado aos peregrinos de Santiago, prosseguir com as minhas pesquisas. Nos arquivos paroquiais, dentre uma série mais ou menos ordenada de informações relativas à construção de Versalhes, encontrei um relatório intrigante sobre um súdito de Luís XIV cujo nome era Jean. O sujeito despertou em mim tamanho interesse que consumi duas semanas inteiras com o trabalho de encadear as informações relativas à sua vida — e morte. Depois de reunida toda a documentação possível, decidi pôr ordem nos relatos sobre a vida do pobre camponês. Não julgo mau o resultado do meu trabalho”.

“Jean vivia com a mãe e a irmã nos limites do burgo de Eus, no Sul. Viviam como camponeses. De acordo com os relatos, seu pai, um ferreiro que atendia pelo nome de Pierre — mas cujo sobrenome, isto é, o nome da família, perdeu-se —, morrera havia três luas cheias antes do nascimento de Jean. Sua irmã, cujo nome era Joana, era apenas um ano mais velha; assim, a mãe viúva teve de encarar o desafio de pôr sobre a mesa o abençoado pão de cada dia — que, como está nos documentos, às vezes faltava. Tão logo Jean crismou-se, aos 12 anos, dois anos antes da idade comumente exigida pelo pároco local a fim de ministrar o Sacramento, pôs sobre os ombros a enxada e, ao lado da mãe, passou a arar as terras do burgo de Eus”.

“Era no tempo do Rei Sol, por toda a França falava-se sobre as obras de Versalhes; toda a gente acorria dos rincões mais longínquos do reino àquele planalto elevado sobre o qual a ilha de fantasia do monarca estava a ser construída. Em Eus, como em diversos outros burgos da região Sul, as condições climáticas, somadas aos sucessivos surtos de peste — os documentos trazem apenas “peste” —, obrigaram os camponeses a emigrarem para áreas nas quais as condições de subsistência fossem mais favoráveis. O Reino, contudo, prosperava. E em nenhuma outra região da França a abastança era tão evidente como em Versalhes. Para lá era transportada a maior porção da riqueza produzida pelos camponeses de todo o Reino — sob a forma de impostos”. 

“No Sul, a família de Jean, assim como as demais famílias da região que também viviam das benesses da terra, passou a sentir os efeitos de uma mutação social profunda: a centralização do poder em Versalhes. Quando o pai de Jean morreu, sua mãe — curiosamente, não encontrei uma referência inequívoca sobre o seu nome, ela poderia se chamar Marie ou Marianne — viu-se obrigada a oficializar sua viuvez. Os registros de Vézelay deixam claro que, durante “doze luas cheias seguidas”, Marie (ou Marianne) tentara, sem sucesso, conseguir do pároco local a subscrição do atestado de viuvez sem o qual ela não poderia contrair novo matrimônio. O pároco — cujo nome não consta nos registros — dizia simplesmente que o reconhecimento do estado de Marie perante a Igreja teria de vir de Versalhes, subscrito pelo próprio Rei. É evidente que tal impasse burocrático dificultou enormemente a vida da pobre mulher”.

“À espera da assinatura do Rei, a viúva criou Jean e Joana “sem o concurso de figura masculina que pudesse ampará-la em suas muitas dificuldades”, como consta nos autos de Vézelay. E assim foi. Mas ela tinha Jean, “que recebera os santos óleos do Sacramento da Confirmação aos 12 anos”. O rapaz teve de aprender cedo a manejar a enxada, o arado, a carpideira; a reconhecer os tempos propícios para o plantio e colheita do trigo, da cevada, da aveia; teve de prematuramente criar músculos também a fim de proteger a mãe e a irmã dos assédios daqueles que “não respeitavam o impedimento da viuvez não desurdida”.

“Por volta dos 18 anos, Jean adoecera. A documentação não deixa evidente, mas aparentemente nesta época Joana, sua irmã, já não mais vivia com eles — ela deve ter fugido com algum pretendente impaciente com a burocracia sacramental. O fato é que, e isto está claro nos autos, sua mãe recebeu todo o amparo dos paroquianos, que garantiram a subsistência da viúva com a esperança de que o filho em breve estaria convalescido. Mas foi em vão. Os cuidados de um monge beneditino chamado às pressas para acudir Jean “surtiram efeito em sua alma, mas não em seu corpo gravemente adoecido”.

“Ontem, a fim de espairecer do árduo trabalho de pesquisa, decidi sair e caminhar por Vézelay, fui até o túmulo de Jean. Eu já havia estado lá antes, já conhecia o local; mas queria reviver a história. O rapaz não pôde ser enterrado em Eus porque sua mãe, viúva, ainda não havia recebido autorização dos burocratas de Versalhes para seguir com a sua vida “livrando-se, com a bênção real, de cair em desgraça e em vergonha”. Os 720 Km de distância entre Eus e Vézelay que a viúva teve de percorrer a fim de enterrar o seu filho deram origem a crônicas e lendas que caíram no gosto do povo. O Governo Revolucionário, porém, temendo que a história de Jean inspirasse antipatia pelo novo regime, determinou que todos os documentos relativos aos fatos fossem confiscados — e queimados. Por sorte, alguém desta vila — suspeito que tenha sido o pároco — conseguiu preservar boa parte do valioso material”.

O professor Denis não mais voltou para a Bélgica. Morreu aqui e, segundo me contaram, foi enterrado em São Antônio do Pinhal, no sopé da Serra da Mantiqueira. Sempre que viajo a Campos do Jordão visito o seu túmulo.

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