SANTO CONTO | Um par de sapatinhos

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Inspirado em um episódio da vida dos Santos Crispim e Crispiano

Crispim e Crispiano já caminhavam havia dias e estavam exaustos, extenuados. Denunciados, tiveram que fugir às pressas de Roma, e sem receber ajuda de quem quer que fosse. Os piedosos irmãos sapateiros, de larga clientela e muito queridos por toda a cidade, de repente haviam se tornado párias, todas as portas se fechavam para eles. A mais caridosa das ações dos conhecidos e amigos de tantos anos era agora fingir que eram dois desconhecidos e não denunciá-los ao oficial mais próximo. No mais, que sumissem. Ajudar cristãos era um risco que poucos queriam correr. E o mesmo foi acontecendo estrada afora. Por onde passavam, em cada casa onde paravam e pediam ajuda, a resposta era a mesma: “Vão embora! Não queremos problemas com a lei!”.

Agora, estavam numa região erma em algum ponto desconhecido em direção à Gália, após muito tempo caminhando e dormindo ao relento. Era meio dia e o sol ardia. Pararam para descansar na sombra de uma grande árvore. Olharam nas sacolas que levavam, havia apenas seus mantos. As provisões haviam acabado. Fracos de fome e cansaço, acabaram adormecendo ali.

Quando o sol começava a cair, acordaram assustados, com um menino os cutucando com um graveto:

–  Ei, moços, moços! Estão bem?

Era um garoto pobre, roupas rotas e pés descalços, muito magro, olhos saltados e olhar curioso. Boca e garganta secas, Crispiano respondeu com dificuldade, a voz fraca:

– Água, menino, água. Tem água?

O pequeno falou dando uns passo para trás, meio arredio:

– Tem um poço em casa.

Crispiano ia perguntar o nome do garoto, mas calou-se. O pequenino já havia se virado e estava indo embora. O viajante cruzou um olhar com o irmão e os dois levantaram sem falar nada. Foram seguindo o garoto, que caminhava depressa.

Minutos depois avistaram uma casa, que parecia ser a única por ali, e na frente dela uma mulher, tão magra quanto o menino, e apreensiva. O garroto saiu correndo em direção a ela. O sol ia caindo mais. Viram o menino conversando com a mulher, e depois entrando na casa. Acenaram, desaceleraram o passo, e tiveram que parar. O cachorro se pusera a meio caminho entre a dona e eles, e parou olhando firme para os dois. Não latia nem rosnava, mas intimidava. Viram o menino sair da casa e entregar uma faca para a mulher. Empunhando a faca, e mantendo o garoto junto de si, ela fez um sinal para os dois:

– Podem vir, mas devagar!

Eles foram, o cachorro os acompanhando de perto. Enquanto andavam, iam reparando na pobreza do lugar, nas roupas também rotas da mulher, nos olhos desconfiados dela e do menino. Quando já estavam próximos o suficiente, ela os mandou parar:

– Agora me digam, quem são vocês e o que querem aqui.

Crispiano se adiantou:

– Somos só dois viajantes, senhora, e caminhamos há muitos dias vindo de Roma. Eu sou Crispiano, e este é meu irmão Crispim.  Só precisamos de um pouco de água e, se a senhora tiver alguma comida, também agradecemos, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A estas últimas palavras, a mulher baixou um pouco a guarda. Aquele nome, Jesus Cristo, provocara-lhe uma curiosidade que ela não sabia explicar. Não O conhecia, mas já ouvira falar, assim como sabia sobre Seus seguidores, os tais cristãos, que, disseram-lhe certa vez, deviam ser evitados. Mas ali estava ela diante daqueles dois sujeitos estropiados e famintos, que, mais que desconfiança, inspiravam-lhe pena. Mandou o menino buscar água, e, ainda com a faca apontada para os dois estranhos, foi-lhes fazendo mais perguntas, querendo saber de suas histórias, por que estavam ali naquele estado.

Eles foram contando o que podiam da melhor forma que conseguiam, enquanto matavam a sede, e, pouco depois, a fome, pois a mulher, já de faca baixada, mandara o menino ir buscar algumas frutas. Impressionou-se de ver como eles bebiam e comiam com sofreguidão, compreendeu que eram realmente dois pobres coitados. Ainda sem entender exatamente o que se dava em Roma, e por que gente como aqueles dois viajantes eram perseguidos pelo Imperador – que para ela, naquele ermo, era quase tão desconhecido como o tal Jesus, de Quem queria saber mais.

A noite avançava, e, em volta do fogo da lareira, os dois irmãos contaram à pobre mulher e ao menino sobre Cristo e história dos Seus seguidores, enquanto partilhavam um jantar ralo. Mãe e filho ouviam a tudo impressionados e fascinados, o fogo baixo da lareira brilhando em seus olhos. Quando já era tarde da noite e todos bocejavam, a mulher ofereceu aquele cômodo, ali diante da lareira, para que eles pudessem descansar. Separou mais um pouco de alimentos e deixou do lado da lareira, sem dizer nada. Eles olharam agradecidos.

Os dois irmãos dormiram poucas horas, mas acordaram reconfortados antes de o sol nascer. Decidiram sair naquela hora mesma, sem se despedir. Não queriam que a mulher e o garoto corressem o risco de se complicarem se fossem vistos os acolhendo mesmo naquele lugar perdido. Quando, embalando seus mantos e a comida, Crispim achou no meio de suas coisas um par de sapatinhos. Mostrou ao irmão, sussurrando:

– Crispiano, olha! Lembra desses sapatinhos?

– Lembro – o outro sussurrou de volta, surpreso – Fizemos para aquele estranho que apareceu com o filho, um dia, encomendou, pagou adiantado, e nunca apareceu para buscar. Não sabia que você tinha trazido!

– Eu não trouxe! Juro! Só tinha meu manto aqui! As coisas do oficina, deixamos tudo lá. Não dava para trazer, você sabe.

Crispiano pegou um dos sapatos e foi falando, intrigado:

– Bom, irmão, se você diz que não trouxe, não trouxe. Mas eles estão aqui. E, quer saber? Eu acho que são do tamanho do pé do menino.

Crispim ficou uns segundo olhando o outro sapatinho em sua mão. Trocou um olhar com o irmão, e não precisaram falar mais nada. Deixaram o par ao lado da lareira, no mesmo lugar onde a boa anfitriã deixara a comida para eles levarem. Saíram em silêncio, devagarinho. O cachorro, na porta, entreabriu os olhos, abanou o rabo e voltou a dormir.

Quando os irmãos já haviam andado um bom tanto, voltaram-se e acenaram para a casa, que ainda dormia, silenciosa. Olharam ambos para o céu e oraram em ação de graças. Ao final, Crispiano falou:

– E que Vossa Verdade, Senhor, possa florescer nos corações daquelas pessoas tão boas.

– E que eles sejam banhados por Vossa Graça! – Crispim completou.

– Amém!

E foram embora, sem olhar para trás.  

Não muito tempo depois, quando já amanhecia e os dois viajantes já iam longe, a mulher despertou com gritos de alegria do menino. Ao lado da lareira, o pequeno sacudia os sapatinhos, que estavam abarrotados com moedas de ouro.


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