SANTO CONTO | O maravilhamento

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Não é que Joel fosse um sujeito ruim no sentido mais extremo do termo. Vivia uma vida comum. Cumpridor da maior parte das leis positivas, transgressor daquelas mais justamente transgredíveis, como o Imposto de Renda. Inclinado aos prazeres, mas sem excessos. Trabalhava e ganhava o suficiente para viver com conforto e ainda guardar algum para viagens solitárias nas férias (o que ele realmente gostava). Cultivava uns poucos amigos, com os quais gostava de sair e papear vez ou outra. Nutria suas antipatias, ou ranços, os quais gostava de maldizer. Apreciava as mulheres, e de vez em quando namorava alguma (coisa que não durava, dado seu jeitão meio morno, meio frio, e sempre chocho). Gostava de bons cafés, de ler e de coisas belas, sem saber muito bem por quê. Na verdade, não pensava muito no assunto. Gostava porque gostava. Porque agradavam. E este era Joel. Não fedia, nem cheirava.

Nesse combo de sem-gracices de Joel estava sua fé. Ou melhor, a falta dela. Nisso não era morno, era frio mesmo. Não sendo exatamente ateu, não sabia o que era, e não ligava nem um pouco pra isso. Fora batizado na Igreja Católica quando pequeno, em um salão que mais parecia um centro de convenções do que uma igreja, em um processo um tanto protocolar. Os pais, sem qualquer entusiasmo, apenas cumpriam lá uma formalidade. E assim o haviam “criado na Igreja”.

Joel havia muito tempo não tinha noção do que fosse uma Missa, não rezava um Pai-Nosso ou Ave-Maria desde que os aprendera por obrigação na infância. Por um tempo, já no fim da adolescência, chegou a se interessar por uma ou outra denominação protestante, mas a coisa não vingou. Da mesma forma, não havia achado a menor graça nas sessões espíritas que frequentara por um breve período com uma namorada na juventude. Era, em suma, naquele momento da vida, um pagão batizado, como tantos de nós já fomos ou ainda somos.

Certa ocasião, Joel viajou para um desses velhos países onde um dia a Igreja floresceu com vigor. Como era de seu costume, oscilava entre os pontos turísticos mais badalados e os lugares que ia descobrindo por curiosidade. E um desses foi justamente uma Catedral. Não era daquelas mais conhecidas, que ilustram as páginas dos livros de História da Arte, mas era bela, muito bela mesmo, já se via por fora. Eram Vésperas, e ele foi atraído para dentro por uma melodia bonita, convidativa.

Entrou devagar, respeitoso, algo lhe dizia que tinha que ser assim. E foi um baque. Estacou. O teto, as colunas, os vitrais, a luz que incidia sobre o altar àquela hora, todo o jogo de luzes e cores daquele fim de tarde no interior da nave, os bancos, as pinturas, as imagens sacras, cada detalhe da decoração, tudo isso, aliado àquela melodia, o pôs embasbacado. Maravilhado. Toda aquela sua chochice interior, de repente, havia desaparecido. O frio dera lugar a um fogo abrasador, que lhe queimava o peito, as entranhas, o cérebro, tudo. A Beleza havia finalmente se revelado a ele, e ele a havia compreendido.

Não se sabe quanto tempo Joel ficou por lá, mas foram horas que ele não viu passar. Após o baque da entrada, ajoelhara-se em um dos bancos e lá ficara em pura contemplação, absorto, arrebatado. Os Pais Nossos e Ave Marias da infância estavam lá também, sendo rezados em silêncio, repetidamente. Quando era hora de fechar, foi gentilmente convidado a se retirar por um sacristão, que o tirou de seu transe, mas dizendo-lhe sorridente que voltasse no dia seguinte, e sempre que quisesse.

Foi embora com um sorriso largo que desde a infância não era mais do seu feitio, ainda rezando os Pais Nossos e Ave Marias pela rua, a caminho do hotel. Haveria de voltar, claro. Voltaria sempre, e sempre. Jamais abandonaria Nosso Senhor novamente, esse era o plano d’Ele, que Joel naquela noite aceitou com amor. Quando já ia longe, rezando alegre, o sacristão, iluminado, sumia-se no ar.


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