SANTO CONTO | O coração arrebatador

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado no martírio de São Roque González

Esbaforido, um curumim chegou correndo para avisar a Padre Roque que os homens do Pajé Nheçu avançavam contra Caaró, e eram muitos, dez vezes mais numerosos que os guerreiros da redução. Nem era necessário o aviso, na verdade. Os gritos de guerra, furiosos, podiam ser escutados de muito longe. E Padre Roque sabia que aquele ataque aconteceria mais cedo ou mais tarde, fatalmente. Mas punha sua esperança no Senhor, e, ainda que com seu sangue, contava poder arrebatar aquelas almas.

Apreensivo, Padre Afonso perguntou ao companheiro o que se havia de fazer, e Padre Roque apenas respondeu: rezar!

– E colocar nossa confiança em Jesus. Nossos homens também se preparam para a guerra, e ela vai acontecer ainda hoje. A nós cabe exortar-lhes os espíritos, abençoá-los para o bom combate, rogar a Deus por suas almas e pedir a intercessão da Virgem Santíssima. No mais, que seja feita a vontade de Deus. Coragem, meu amigo!

E assim foi. Até o último homem, os guerreiros de Caaró lutaram. Por suas famílias, por sua terra, por seus padres, por seu Deus, Aquele a quem conheciam havia tão pouco tempo e a quem amavam acima de tudo. Quando já caía a noite e na redução empilhavam-se cadáveres, o cheiro de sangue se misturando ao das casas que iam sendo incendiadas, os dois jesuítas foram levados amarrados ao centro da aldeia, atados a um tronco, e queimados vivos. Nem um só instante deixaram de rezar, e houve quem os escutasse ainda rezando quando suas carnes já iam há algum tempo sendo consumidas pelo fogo.

Naquela noite, os homens de Nheçu festejaram em volta daquela fogueira, e os festejos ainda duraram por vários dias. Possessos, eles beberam, comeram, dançaram quase que incessantemente. Tomaram como prêmio as jovens órfãs e as viúvas, divertiram-se judiando dos curumins e das velhas. Fartaram-se.

Em certa manhã, um dos chefes encontrou entre as cinzas dos dois jesuítas um coração, intacto, sangrando, quente, como se recém-retirado de um corpo. Arregalou os olhos um tanto incrédulo, pegou o coração e, empunhando-o, saiu a gritar pelos companheiros, que, ainda sob os efeitos das grandes orgias, acordavam zonzos, pesados, mal humorados. Conforme iam vendo aquele coração incorrupto, sentiam-se incomodados. Era algo estranho, como se adivinhassem que uma força maior que a de seus deuses os estivesse desafiando. E o ódio no espírito de cada um deles revigorou-se, e todos iam vociferando com fúria renovada, insultando aquele milagre que os afrontava.

O coração foi entregue ao Pajé Nheçu, que o pegou com cara de nojo e cuspiu sobre ele. Vários outros o imitaram, escarrando sobre o órgão sangrento. Conforme as ordens do Pajé, o coração foi colocado sobre um toco de árvore e alvejado por inúmeras flechas. A cada saraivada, os guerreiros riam, gabando-se de seus tiros, competindo entre si sobre o melhor disparo. As mulheres, os curumins e os velhos, obrigados a assistir à cena, choravam e rezavam a Nossa Senhora. Quando um dos guerreiros foi arrancar as flechas do coração para prepara-lo a uma nova carga, o órgão pulsou em sua mão, e ele o largou apavorado. Todos então escutaram sair do coração a voz do próprio Padre Roque, grave e trovejante:

– Vós mateastes quem tanto vos amou! Porém, matastes só o meu corpo, pois minha alma está no Céu!

O guerreiro que estava ali bem diante do coração foi o primeiro a cair de joelhos, olhando fascinado para suas mãos vermelhas do sangue, que, agora sabia, era do santo jesuíta. Em seguida, o próprio Pajé, que, sentindo em seu peito as várias saraivadas que haviam flechado o coração de Padre Roque, pôs-se a chorar aos soluços, com o rosto por terra. Todos os mais caíram por terra e também choraram, clamando por perdão àquele Deus desconhecido que até então tanto odiavam. Os prisioneiros também choravam, mas de alegria, e davam graças a Nosso Senhor.

No Céu, Padre Roque e Padre Afonso também rendiam graças a Jesus, que, ali ao lado deles, olhava feliz para os milhares de filhos cujas almas acabara de ganhar.


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