SANTO CONTO | O convidado

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado em um episódio da vida de Santa Isabel da Hungria

I. A bile

Num canto escuro em uma das câmaras do castelo, a Rainha Mãe torcia a boca enquanto ruminava pragas contra a nora. Há pouco, vira a longa fila de pobres que a jovem Rainha recebia com alegria, distribuindo-lhes alimentos, roupas, cobertas e dinheiro. O brilho de uma moedinha de ouro na mão de um daqueles indigentes fora a gota d’água que terminara de enchê-la do ódio mais profundo. A mulher sentia o estômago queimar enquanto pensava com desprezo na nora, e chegava a imaginar-se expulsando-a do reino a pontapés. “Quem sabe um dia”, pensava sentindo a bile corroer-lhe as entranhas.

Neste estado de espírito, logo que pôde estar a sós com o filho, a matriarca não o poupou de investidas:

– Luís! Luís! – ela puxava o jovem Rei pela roupa com força – Olhe lá sua esposa, de novo dilapidando os bens do reino!

– Mãe – o rapaz suspirava entre impaciente e resignado – De novo isso? Eu dei a Isabel a liberdade para dispor das nossas riquezas como bem entendesse, a senhora sabe…

– Sei, sim! – a mulher agarrava a roupa do filho com tanta fúria, que quase rasgava o tecido – Sei que essa desmiolada que te foi prometida ainda vai esgotar todos os nossos recursos! Nosso ouro! Nosso ouro, Luís! Ela estava dando nosso ouro àqueles pobres-diabos, àqueles parasitas!

– Mãe – o jovem interrompeu-a com delicadeza – Isabel é minha esposa, mãe dos meus filhos e de seus netos, e o meu amor. E eu não a trocaria por montanhas do ouro mais puro. É ela a minha maior riqueza, mãe. Ela faz o que orientam Nosso Senhor Jesus Cristo, a Igreja e os padres. Por que a senhora não faz o mesmo?

Neste momento a matrona deu um grito, olhou com ódio para o jovem Rei, deu-lhe as costas e saiu pisando duro, amaldiçoando a nora, o filho, os netos e todos os padres do mundo, enquanto sentia o estômago arder ainda mais.

II. O leproso

Lá fora, a fila de indigentes havia terminado, e Isabel passeava pelos jardins do palácio. Foi quando se deparou com uma figura que vinha em farrapos, um homem todo envolto em ataduras sujas e com feridas vivas que fediam a podridão. Ele mantinha distância, mudo e cabisbaixo, e apenas estendia as mãos, pedindo o que quer que pudessem lhe arrumar.

A jovem Rainha olhou-o com uma compaixão incomum. Não era o primeiro doente, nem mesmo o primeiro leproso que via, mas aquele pobre coitado lhe inspirava uma pena diferente. Em seu coração, sentiu que era alguém para quem devia uma atenção especial. Aproximou-se do homem e lhe estendeu a mão:

– Venha, senhor. Vamos tratar dessas feridas.

Assim, ignorando o espanto de todos que se deparavam com a cena inusitada, Isabel conduziu o pobre lázaro a seu aposento, onde tratou de suas chagas com todo o cuidado, trocando suas ataduras por outras, novas e limpas, e derramando sobre ele óleos perfumados. Depois, deu-lhe água e o alimentou com o que havia de melhor no palácio. Enquanto ele comia, a moça lhe trouxe roupas novas, de seu próprio marido, e lhe disse antes de deixar o aposento:

– O senhor hoje será nosso convidado de honra e dormirá em nossa cama. Agora, com licença, que eu já volto.

III. A intriga

A notícia do leproso que adentrara os aposentos reais espalhou-se rapidamente pelos corredores do palácio, e assim rápido chegou aos ouvidos da Rainha Mãe pelas línguas dos nobres mais invejosos. Revoltada, a matrona correu por todos os cantos do castelo enquanto berrava o nome do filho, que foi encontrar na Capela, onde orava. A mulher adentrou o lugar santo ignorando qualquer reverência, e desta vez cravou os dedos no colarinho do filho e o chacoalhou, como que querendo esganá-lo:

– Maldito o dia em que te foi prometido em casamento esse demônio, Luís! Maldito! Eu sempre soube que ela não prestava, que era uma preguiçosa esbanjadora, uma irresponsável e leviana, mas hoje eu descobri que ela é também uma assassina!

– Mãe! – o Rei se libertou da megera com um safanão, mas ela lhe devolveu um tapa na cara, que o deixou atônito:

– Agora, escuta, seu ingrato! A sua esposa, agora mesmo, acabou de levar um leproso para a sua cama! Isso mesmo, um leproso, um maldito podre, para infectar o seu quarto, os seus lençóis, e te deixar doente! Ela quer te matar, Luís, te matar! Aquela desgraçada! Aquela…

Não conseguiu continuar. Sentiu a bile ardendo no estômago e subindo em um jato ácido pelo esôfago e a garganta. Engasgou-se, mas não foi amparada pelo filho, que já ia longe, em direção ao quarto.

IV. A dádiva

Seguido a uma prudente distância por um grupo de curiosos e mexeriqueiros que ia aumentando pelo caminho, Luís seguia com passo firme pelos corredores do palácio. Ia com pressa, irritado pelo ataque da mãe, mas tranquilo em relação à esposa. Em seu coração, ele já sabia que de fato Isabel levara um leproso para o quarto e cuidara dele, e tinha total consciência de que aquele era mais um ato de caridade de sua amada, e não uma conspiração para matá-lo. Ainda, em poucas semanas ele sairia para uma Cruzada, e cuidar daquele indigente talvez fosse a graça que vinha pedindo que Deus lhe enviasse antes que partisse. Assim, ele seguia resoluto para ajudar a esposa naquela empreitada amorosa.

Chegou à porta do quarto no exato momento em que Isabel dali saía, recebendo-o com um sorriso:

– Meu amor! Venha! Tenho que te mostrar uma coisa, uma dádiva que Nosso Senhor nos dispensou hoje!

– Eu sei – ele a deteve por um segundo, beijando-a na testa – De algum jeito, eu já sei de tudo. É mesmo uma bênção que Ele nos enviou, e que eu tenho pedido.

De mãos dadas, o casal adentrou alegre o quarto, mas lá dentro não encontraram o leproso. Em vestes gloriosas, sorria-lhes o próprio Cristo, que os abençoava. E então, por todo o palácio, e para além dele, espalhou-se a Sua Luz Divina.


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