SANTO CONTO | A Queda

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado em Gn 3

Deitada na grama, Eva olhava tranquila para o céu. Ali perto a serpente a mirava furtivamente, invejosa, cheia de um ódio insuportável. Aproximou-se da jovem devagar, sorrateira, falou-lhe ao pé do ouvido:

– Olá, querida…

– Serpente, oi! Nem te percebi chegando, eu estava…

– Não tem problema, querida, não tem problema. Então, em que estavas pensando?

– Ah, eu estava vendo as nuvens e pensando no amor que o Pai tem por nós, tudo o que Ele criou para nós, tudo o que nos dá e…

– Tudo mesmo?

– Ué, tudo!

– Mas e aquela árvore grande, no meio do jardim? Ela também?

– Não, aquela árvore não! – Eva arregalava os olhos – Do fruto daquela árvore não podemos comer, ou morreremos, o Pai nos avisou e…

– Será mesmo, querida? – a serpente ia sussurrando no ouvido da jovem – Será mesmo que morrereis?

– Ué, mas claro! Por que o Pai mentiria para nós?

– Olha, eu vou te contar um segredo, meu bem, porque eu gosto muito, muito de ti… Ele mentiu para vós, sim! Ele vos teme!

– Teme? Mas por…

– Porque Ele não quer que sejais como Ele, quer ver-vos eternos escravos! Ele não é bom, Eva… Ele é um tirano!

– O que são escravos? O que é um tirano? – a moça sentia seu coração bater de uma forma diferente, descompassado.

– Tirano é alguém que quer mandar em tudo o que os outros fazem, e escravos são aqueles que obedecem… E é assim que Ele faz convosco, contigo e com teu esposo, querida, Ele não vos deixa serem livres…

– Não! É mentira! Ele deixa sim! Ele nos ama! Ele…

– Ah, é? Pois então, por que não provas do fruto da árvore no centro do jardim? Uma mordida só! Vai lá, se te julgas livre…

– Não, eu não posso! É a única coisa que… – Eva falava enquanto já se dirigia à árvore sem sequer perceber.

– Uma coisa eu te garanto, querida: quando comerdes desses frutos, vossos olhos se abrirão para além de tudo o que podem ver, tereis todo o conhecimento do universo e… sereis como deuses!

– Deuses? – Eva falava já se aproximando da árvore, pegando um dos frutos, ainda hesitante – Como assim, deuses? Existem…

– Sim, meu bem, existem outros deuses! Tão poderosos como Ele… Ora, ele nunca vos contou? É claro que não. Ele é egoísta e quer tudo só para Si, não quer dividir com os filhos… Mas, se comerdes desses frutos, sereis como Ele, tereis todo o poder d’Ele… Se não comerdes, sereis eternamente Seus escravos… Mas tu és livre, querida, ou quase… Só falta uma coisa: prove o fruto. Vai, uma mordida só…

Eva ficou alguns minutos ainda olhando para o fruto em suas mãos, enquanto a serpente continuava a sussurrar palavras doces, melífluas, em seus ouvidos, e o veneno aos poucos chegando ao coração da moça. O fruto era bonito, tenro, apetitoso, cheirava bem. A jovem ainda resistiu por mais alguns momentos, até que, olhos fechados, deu a primeira mordida. Era delicioso! Sentiu um prazer novo, diferente, que lhe percorreu todo o corpo e a fez se arrepiar inteira. Seus sentidos estavam todos alterados, seus pensamentos em turbilhão, frenéticos, delirantes, e ela gostou. Olhou com malícia para a serpente, ria à toa, cheia de êxtase, quase em transe, eufórica. Naquele momento, Adão chegou.

– Querida! – ele a olhava assustado – Você não deveria…

– Deveria sim, amor! E você também! Toma, experimenta!

Ele viu a alegria de Eva, o brilho novo em seus olhos, e o olhar da serpente, que o encarava com malícia, olhou para o fruto e teve e mesma tentação que a esposa. Mordeu e sentiu o mesmo prazer, a mesma delícia. A serpente se rejubilou e foi se afastando dos dois devagar, silenciosa, gozando de seu triunfo.

Naquele momento, Adão e Eva perceberam que estavam nus, sentiram vergonha, e todo o prazer cessou de repente. Os dois correram a uma figueira, arrancaram alguns galhos, improvisaram roupas com suas folhas. Depois, foram se esconder entre as árvores, com medo do Pai, cujos passou ouviram perto dali. Mas Ele os encontrou. Na verdade, já os havia visto e conhecia seus pecados. Mas quis tirar a verdade deles:

– Adão, que fazes aí? Por que te escondes? Por que cobres teu corpo?

– Pai – O jovem saiu de trás de uns arbustos envergonhado – Eu escutei Teus passos e me escondi aqui porque estava nu e senti vergonha, eu…

– E como sabias que estavas nu?

– …

– Acaso comeste o fruto da árvore proibida?

Adão, cabisbaixo, não ousava encarar o Pai. Trêmulo, adiantou-se:

– Comi, Pai, mas não foi culpa minha! – apontou para Eva – Foi ela! Ela que comeu primeiro e me ofereceu, e…

– Quieto! – Deus sentia o Coração dolorido ao ver a maldade já tão bem configurada em Seu filho amado – Calado, Adão! Não foi para isso que eu te criei! Não foi pra isso que criei os dois! Eu…

Então, Ele percebeu a serpente ali perto, assistindo à cena, e amaldiçoou-a:

– Tu, criatura, porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais domésticos e feras do campo! Estás condenada a rastejar pelo resto de tua existência! E mais: porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela! Ela te esmagará a cabeça, e tu hás de ferir-lhe o calcanhar!

Deus virou-se então para os filhos:

– Quanto a ti, mulher, eu multiplicarei os sofrimentos do teu parto! Darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido, e estarás sob o domínio dele! E tu, Adão, maldito sejas por tua fraqueza e tua covardia! O que te era dado de bom grado da terra, agora terá que ser cultivado e conquistado, merecido por meio do trabalho pesado, do teu cansaço, por todos os dias de tua vida! Comerás o pão com o suor do Teu rosto, até que voltes à terra de onde foi tirado. Porque tu és pó, e ao pó voltarás!

Naquela hora, a serpente, cheia de ódio e veneno, mirou o calcanhar de Eva e quis atacá-la, mas a um olhar de Deus ela tremeu e rastejou para dentro de um buraco na terra.

Deus então fez roupas de pele para Adão e Eva e lhes deu. Fez um gesto ao Anjo, que com sua espada flamejante apontou ao casal o caminho que deveriam seguir. Estavam expulsos do Éden. E enquanto iam embora, Deus, com Seu Coração ainda dolorido, porque era Pai, abençoou-os.

Algum tempo depois, enquanto Adão fazia reparos na nova casa, suando sob o sol da tarde, escutou a esposa a chamá-lo e foi ver o que era. Eva havia tido enjoos e vomitava. O bebê mostrava a ela seus primeiros sinais.


DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor