RESENHA | Essencial Franz Kafka

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

A coletânea reúne algumas das principais obras do escritor boêmio

Dentre as incontáveis confusões que vingaram no Brasil, destaco aqui uma a fim de dar ensejo à matéria: em Pindorama as pessoas confundem, qual focinho de porco com tomada, o gentílico boêmio com o adjetivo homônimo que descreve aquele que, errante e incerto, leva uma vida fácil, despreocupada, sem propósito. Boêmio é quem nasce na Boêmia, não quem é frequentador assíduo dos botequins da Vila Mariana.

Num esforço de contundência, podemos dizer em resumo que a Boêmia era uma antiga região da Europa Central que, passados séculos de conchavos políticos de impérios inteiros, tornou-se a atual República Checa, berço de Franz kafka. O controverso escritor nasceu em Praga, em 1883. A Metamorfose, escrita em 1912 quando o autor tinha 29 anos, é provavelmente a sua obra mais conhecida; o inseto monstruoso no qual Gregor Samsa metamorfoseia-se consta no catálogo universal das imagens invocadas pela Literatura.

Quem quiser saber o que dizem os grandes críticos do cânon literário ocidental acerca do pioneirismo do Kafka, da forma como deu expressão verbal às nuances mais íntimas da vida cotidiana, pode consultá-los na seção de Crítica nas livrarias. Aqui, de forma mui resumida, vai a minha impressão da leitura — tomada de memória, porque li o controverso Franz há meses.

O selo Clássicos Penguin, da Cia das Letras, é um dos raros sucessos editoriais — reduza-se a vivacidade do espectro em torno do termo sucesso — no Brasil. Esta coletânea das obras de Kafka, selecionada e traduzida por Modesto Carone — sorocabano veterano na lide com as letras –, considerado o maior entendedor do escritor boêmio em solo brasileiro, é de um capricho digno de registro.

As narrativas de Kafka são, em boa medida, registros de uma voz deslocada no mundo; mas o são na paradoxal medida em que aquele que segura a pena ascende a patamares de compreensão do mundo que só podem mesmo tomar uma forma legível através da Literatura. O impacto do que o observador das situações individualizadas de Gregor Samsa, ou de George Bendemann, ou do artista da fome, ou do desgraçado na colônia penal escreve está frequentemente no que ele não diz; kafka é um daqueles mestres que dominaram a dificílima arte de valorizar o que subjaz nas entrelinhas.

A vantagem desta edição, para além da primorosa tradução, são os comentários introdutórios do Carone. Para cada história, novela ou parábola do escritor da língua alemã o tradutor brasileiro esforça-se por entregar ao leitor os elementos fundamentais — literários e biográficos — para a máxima compreensão da narrativa. Nem sempre, no entanto, as palavras do tradutor são bem-vindas: às vezes ele, num esforço por facilitar a compreensão da obra kafkiana ao leitor, diz muito e, ipso facto, traz para a sua experiência todas as nuances de interpretação da obra.

O bom crítico é aquele que não diz tanto a ponto de desinteressar o leitor do empreendimento da investigação da realidade por meio da obra de Literatura, mas diz o suficiente a fim de instruí-lo, de lançar luz sobre os degraus iniciais da descoberta. Sob a minha perspectiva de leitor, acho que Modesto Carone pecou nesse sentido — mas foram pecados veniais que de modo algum condenam o seu brilhante trabalho. Recomendo que o leitor siga a ordem das narrativas escolhidas pelo tradutor; a primeira delas, O Veredicto, é uma mostra permanente da dinâmica kafkiana das entrelinhas. A edição traz ainda uma prenda: os 109 aforismos do Kafka coligidos pelo próprio autor.

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Com informações de Kafka, Franz, Essencial, Penguin Companhia, Cia das Letras Editora, 5ª reimpressão, São Paulo, SP, 2019.


“O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que a ser trilhada”.

Franz Kafka

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