A coletânea reúne algumas das principais obras do escritor boêmio
Dentre as incontáveis confusões que vingaram no Brasil, destaco aqui uma a fim de dar ensejo à matéria: em Pindorama as pessoas confundem, qual focinho de porco com tomada, o gentílico boêmio com o adjetivo homônimo que descreve aquele que, errante e incerto, leva uma vida fácil, despreocupada, sem propósito. Boêmio é quem nasce na Boêmia, não quem é frequentador assíduo dos botequins da Vila Mariana.
Num esforço de contundência, podemos dizer em resumo que a Boêmia era uma antiga região da Europa Central que, passados séculos de conchavos políticos de impérios inteiros, tornou-se a atual República Checa, berço de Franz kafka. O controverso escritor nasceu em Praga, em 1883. A Metamorfose, escrita em 1912 quando o autor tinha 29 anos, é provavelmente a sua obra mais conhecida; o inseto monstruoso no qual Gregor Samsa metamorfoseia-se consta no catálogo universal das imagens invocadas pela Literatura.
Quem quiser saber o que dizem os grandes críticos do cânon literário ocidental acerca do pioneirismo do Kafka, da forma como deu expressão verbal às nuances mais íntimas da vida cotidiana, pode consultá-los na seção de Crítica nas livrarias. Aqui, de forma mui resumida, vai a minha impressão da leitura — tomada de memória, porque li o controverso Franz há meses.
O selo Clássicos Penguin, da Cia das Letras, é um dos raros sucessos editoriais — reduza-se a vivacidade do espectro em torno do termo sucesso — no Brasil. Esta coletânea das obras de Kafka, selecionada e traduzida por Modesto Carone — sorocabano veterano na lide com as letras –, considerado o maior entendedor do escritor boêmio em solo brasileiro, é de um capricho digno de registro.
As narrativas de Kafka são, em boa medida, registros de uma voz deslocada no mundo; mas o são na paradoxal medida em que aquele que segura a pena ascende a patamares de compreensão do mundo que só podem mesmo tomar uma forma legível através da Literatura. O impacto do que o observador das situações individualizadas de Gregor Samsa, ou de George Bendemann, ou do artista da fome, ou do desgraçado na colônia penal escreve está frequentemente no que ele não diz; kafka é um daqueles mestres que dominaram a dificílima arte de valorizar o que subjaz nas entrelinhas.
A vantagem desta edição, para além da primorosa tradução, são os comentários introdutórios do Carone. Para cada história, novela ou parábola do escritor da língua alemã o tradutor brasileiro esforça-se por entregar ao leitor os elementos fundamentais — literários e biográficos — para a máxima compreensão da narrativa. Nem sempre, no entanto, as palavras do tradutor são bem-vindas: às vezes ele, num esforço por facilitar a compreensão da obra kafkiana ao leitor, diz muito e, ipso facto, traz para a sua experiência todas as nuances de interpretação da obra.
O bom crítico é aquele que não diz tanto a ponto de desinteressar o leitor do empreendimento da investigação da realidade por meio da obra de Literatura, mas diz o suficiente a fim de instruí-lo, de lançar luz sobre os degraus iniciais da descoberta. Sob a minha perspectiva de leitor, acho que Modesto Carone pecou nesse sentido — mas foram pecados veniais que de modo algum condenam o seu brilhante trabalho. Recomendo que o leitor siga a ordem das narrativas escolhidas pelo tradutor; a primeira delas, O Veredicto, é uma mostra permanente da dinâmica kafkiana das entrelinhas. A edição traz ainda uma prenda: os 109 aforismos do Kafka coligidos pelo próprio autor.
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Com informações de Kafka, Franz, Essencial, Penguin Companhia, Cia das Letras Editora, 5ª reimpressão, São Paulo, SP, 2019.
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“O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que a ser trilhada”.
— Franz Kafka
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Muito obrigado por este texto, Vitor. Você é o cara!