Resenha do filme “A Bruxa”

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Conflitos familiares, culpa e a busca frustrada pela redenção. A tônica do filme é o delineamento dos conflitos existenciais no seio de uma família puritana

Perverter a imagem de Deus, eis a mais ardilosa das artimanhas do diabo. Fazê-Lo parecer cruel em seus julgamentos e injusto em suas sentenças; mostrá-Lo desde um obscuro quadro de indiferença e frieza para com os sofrimentos humanos; transformá-Lo num juiz cruel, corrompendo assim a sua intrínseca bondade, eis os intentos do adversário de todas as almas. O criador não é um pai amoroso, Ele é injusto, porque depositou sobre os ombros dos homens um jugo demasiado pesado. Levar a vida na incerteza da salvação das suas almas é tudo o que resta aos seus filhos. Essa é a realidade apresentada na narrativa do diretor americano Robert Eggers no seu longa-metragem A Bruxa, “The Witch“, estreado em 2015. O filme traz um subtítulo muito explicativo: “A New England Folktale“. Esse conto popular da Nova Inglaterra é o retrato perfeito dos conflitos típicos do ambiente de coerção moral e imposição da utópica ética irrepreensível. Da velha Inglaterra vieram os Pilgrims Fathers trazendo na bagagem a Geneva Bible de William Whitingham e a esperança de conquistar a “Terra Prometida”, a “terra que mana leite e mel“.

O filme de Eggers é um verdadeiro estudo psicológico sob moldes estéticos da mentalidade daqueles peregrinos que sobreviveram às primeiras noites na América. Com o entusiasmo para conquistar o new world traziam também uma nova cosmovisão da realidade: a mentalidade protestante dos puritanos. Estes, que se afastaram da Igreja Católica e dos ritos pseudo católicos dos anglicanos, mantinham bem próximos de si a interpretação calvinista do mundo: a doutrina da Predestinação. Deus, em sua infinita bondade, determinou de antemão o destino de todas as almas, de modo que, como sinal de sua salvação eterna, o indivíduo recebe bênçãos em vida. Estas vêm, quase sempre, sob a forma de prosperidade material. As bênçãos e as maldições na vida são, portanto, manifestações inequívocas da Graça de Deus sobre os filhos da salvação ou da danação eternas. Nesse ambiente é natural que uma predisposição — fruto de uma afetação psicológica — para o trabalho duro fosse uma marca característica da sociedade, assim como a preocupação demasiada com lucro.

Mas e quando o trabalho, mesmo diligente, não dá resultados favoráveis? A história é centrada na narrativa da vida de uma família de puritanos imigrada da Inglaterra para a costa leste da América do Norte. Pai, mãe e filhos vivem agora como membros de uma comunidade religiosa na qual os rígidos preceitos morais têm o peso da coerção da lei e a não observância do comportamento irrepreensível perante Deus e os homens é passível de excomunhão. Um dia, porém, o patriarca da família, homem de caráter questionador e rebelde, é levado a julgamento perante os legisladores da moral do povo da pequena comunidade. Por motivos de “consciência“, o homem se rebela contra o status quo da administração religiosa da comunidade e, por isso, na companhia de sua família, é convidado a abandonar a vida na vila e a tomar o rumo do desconhecido; para além da proteção dos muros daquela sociedade controlada e controladora. O convite é aceito “com prazer“.

A família encontra uma região favorável, fronteiriça a uma floresta, e eis que os esforços para o estabelecimento da nova vida começam. Nesse campo, a família dá início a construção de uma pequena fazenda e, em função da diligência no trabalho, alcançam relativa estabilidade. Cultivam uma pequena lavoura de milho, uma horta; criam animais que dão leite e chegam aos estágios finais da construção de um pequeno celeiro. A moradia principal é simples e rústica, mas, em pouco tempo, ingressam numa fase de estabilidade que, a julgar pela dedicação que todos empregam na labuta cotidiana, tende a se consolidar. No entanto, a chama da no seio da família começa a bruxulear quando os frutos do trabalho não mais são viçosos, e a bondade divina parece ter cessado. Aquela que seria a primeira colheita da lavoura de milho e que inauguraria uma nova fase de prosperidade na vida da família longe da comunidade puritana, revela-se um tremendo fracasso: os milhos são bichados. O momento dramático ganha densidade quando o filho mais jovem, um bebê gordinho, desaparece quando estava sob os cuidados da filha mais velha.

O patriarca que, na Inglaterra, fora agricultor, não sabe caçar, por isso aqueles que estão sob os seus cuidados dependem exclusivamente dos rendimentos da lavoura para sobreviver. Há uma cena na qual o pai leva o filho mais velho para ajudá-lo a preparar armadilhas na floresta. Ambos vão à contragosto da matriarca, pois ela, sob efeito de uma inquietação, de um afligimento, de uma angústia constante, proibira a todos de entrar na floresta, pois seu bebê fora levado para as entranhas daqueles ermos — não se sabe ao certo por quem ou pelo quê. Ocorre que, entre pai e filho, se estabelece um diálogo crucial para o entendimento da mensagem do filme. Enquanto caminham lado a lado, o filho recita máximas decoradas dos preceitos religiosos que aprendera com o pai; o velho indica um preceito puritano, um tema, uma premissa e pede para que o filho o recite. O menino demonstra aptidão não só para o trabalho duro, mas também para a observância dos preceitos da religião que aprendera com os seus pais. Pelo menos ele tem boa memória. Finalmente, ambos chegam no local onde o pai armara uma das armadilhas: está vazia, não pegaram nada.

Enquanto constata o fracasso, ajudando o pai a rearmar a engrenagem da arapuca, o menino pára e, parecendo emergir de uma profunda reflexão, começa a tecer perguntas ao seu pai; são questionamentos sobre a realidade da danação eterna tantas vezes apregoadas pela religião. O garoto pergunta se será salvo, se Thomasin — sua imã mais velha — será salva, se o bebê, que desaparecera, e todos os outros membros da sua família terão um lugar no Paraíso quando encontrarem a morte. O pai, homem atormentado pela incerteza da salvação da sua própria alma, responde com um sincero e melancólico “eu não sei“; afirma que ama o filho e que é necessário ter em Deus. Uma evasiva? Talvez para a sua cosmovisão sim, mas não para a realidade. A perspectiva da misericórdia divina é cinza, é tão nublada e incerta quanto a paisagem outonal insistentemente capturada pelo diretor Eggers. A visão de mundo da família não inclui a possibilidade da redenção e perdão dos pecados senão através de um permanente estado de contrição perfeita que, ao invés de elevar o indivíduo para um estado de alegria, de júbilo em se saber perdoado, o afunda cada vez mais numa depressão. Para eles, é só através de um esforço sobre-humano que, na prática da religião cotidiana, alguém pode chamar a atenção de Deus.

As relações familiares subsistem sob uma tensão constante entre a fiscalização da moral alheia e o esforço permanente para obter o perdão divino. Este, no entanto, não é efetivamente alcançado. Não há como reprimir as paixões da carne, o ímpeto pecaminoso para praticar o mal, nem em si, tampouco no próximo. Toda a aparente disciplina de uma vida austera é mera hipocrisia. O perdão efetivo só é obtido mediante o exame de consciência e confissão, o que exige, para esta, um mediador. Entretanto, não há mediadores na cosmovisão religiosa da família vivendo no limiar da floresta; eles próprios, como indivíduos, são os seus sacerdotes, são os responsáveis pela integral observância de todos os preceitos. Cada um é fiscal de si e do próximo. Entre o casal há, por parte da mulher, uma cobrança ainda maior, porque crendo que a prosperidade material é sinal inequívoco da Graça de Deus, ela se desespera quando percebe que a família não tem mais condições de se manter naquele lugar. A comida está escasseando e, para piorar, coisas muito estranhas acontecem. Uma atmosfera de suspeita cresce em torno de Thomasin, sua família acredita que a garota é responsável pelo desaparecimento do bebê.

Na mentalidade ocidental da primeira metade do século XVII estava presente a compreensão de que haviam aqueles que, afastando-se de Deus, praticavam deliberadamente o mal. Era uma prática consciente; uma manifestação clara da vontade do indivíduo mal em servir ao Mal. Tais pessoas entregavam-se ao serviço do maligno, cumpriam os seus desígnios, atendiam ao seu chamado, serviam aos seus propósitos. As cidades, as vilas, os condados, as estruturas urbanas que, naquela época, estavam à mercê da tecnologia disponível e eram organizadas com os meios materiais, políticos, culturais, econômicos e religiosos vigentes, estavam sob a ameaça dos servos do Diabo. A possibilidade de que houvesse alguém à espreita rogando um sortilégio contra um ente de sua família, era real e combatida através dos meios aceitáveis de uma época em que governantes e governados partilhavam do mesmo corpo de princípios e valores morais e religiosos. Esta realidade, comparada com a nossa dinâmica contemporânea, soa estranho, pois não há mais harmonia entre a do povo e a dos líderes. Basta constatar a complacência sob a forma de simpatia (hipocrisia) que os nossos líderes têm pelo aborto, pelo casamento homossexual e por toda sorte de contrariedades à moral do povo. Mutatis mutandis, se houvessem bruxas hoje — yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay –, elas seriam amplamente defendidas pelos líderes políticos e qualquer atentado contra as suas práticas religiosas, como o aborto ritualístico, seria penalizado com o rigor da lei. A linguagem favorável às bruxas, portanto, seria a do politicamente correto.

No livro A Verdadeira História da Inquisição, o autor Rino Camilleri, jornalista e cientista político italiano, conta que, durante a Idade Média, muito diferentemente do que a narrativa moderna propaga, haviam de fato pessoas que praticavam antigas religiões pagãs — isto num contexto histórico no qual a completa cristianização da Europa ainda não se efetivara. O sacrifício de recém-nascidos era parte integrante das prescrições macabras dessas religiões. Camilleri diz ainda que, se não fosse através da intervenção direta dos membros do clero local, como padres, monges e freiras, os acusados do assassinato dos bebês seriam trucidados, linchados, condenados sumariamente pelos aldeões revoltados sem a possibilidade de um julgamento. Fora, portanto, a intervenção direta da Igreja que, aplicando os princípios do Direto, salvara muitos desses pagãos de uma condenação sem julgamento, injusta. No filme, Robert Eggers soube retratar com uma quase perfeição a realidade do choque entre cristãos protestantes, que não estavam sob a direção do Direito Canônico da Igreja Católica, e os elementos contrários à sua . O grande mérito de Eggers foi o de ter desenvolvido a sua narrativa a partir de um enfoque psicológico.

Thomasin, sobre quem recaem as acusações de bruxaria, se vê vítima de uma complexa trama na qual a constante pressão psicológica do ambiente familiar, somadas a acontecimentos estranhos, preparam o caminho para o afastamento definitivo da garota de tudo aquilo que ela ama. Cansada da permanente repressão, ela, numa reação desesperada, revela toda a realidade da hipocrisia do seu pai; contra sua mãe, no entanto, Thomasin vai às últimas consequências de um confronto aniquilador. O Diabo, sob a forma de um bode negro, que as crianças dos contos populares da Nova Inglaterra chamavam de “Black Phillip“, obteve sucesso com o seu plano: conseguiu atrair e tomar Thomasin para si através das brechas morais de uma família escrava da hipocrisia e refém dos seus próprios pecados. Black Phillip oferece à garota uma vida futura de luxúria e prazeres indescritíveis. É irresistível, pois afinal, o que ela tinha antes? Uma vida miserável na qual o medo constante da condenação eterna era a sua realidade cotidiana e a impossibilidade prática da redenção, da ascese espiritual, a torturava permanentemente. A pobre família não conseguiu vislumbrar nada que estivesse para além dos seus próprios pecados, confirmando assim as palavras de Nietzsche em “Para Além do Bem e do Mal“: “Aquele que luta contra monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você“. A cena final é um coroamento estético deslumbrante.

Esse conteúdo é exclusivo para assinantes da Revista Esmeril.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor