A fábula de George Orwell é uma história do nosso tempo
Eric Arthur Blair, o escritor mundialmente conhecido pelo pseudônimo de George Orwell, fora um profeta. No século XX poucos foram os escritores que souberam alertar — e admoestar — a humanidade acerca dos perigos que ameaçavam não só a liberdade, mas a própria vida humana. O Nazismo e o Comunismo que, à época da publicação de Animal Farm, em 1945, já haviam ceifado mais de cem milhões de almas, é parte da terrível realidade apresentada sob o delicado véu da fábula.
Os animais que viviam sob o regime de uma espécie de “absolutismo humano” decidem, depois de ouvirem o discurso inflamado — e altamente demagógico — de um porco, pegar em armas e tomar o controle da Fazenda do Solar. O fazendeiro, um alcoólatra arruinado, apesar de inicialmente resistir à rebelião, não vê outra alternativa senão deixar a sua propriedade à mercê dos seus próprios animais amotinados. E eis que o Ancien Régime chega ao fim.
Na Fazenda do Solar, antes da revolução, os animais eram mantidos com o mínimo necessário para viver e trabalhar. Agora, sob uma espécie de regime de exceção, do governo provisório de Napoleão — um porco sagaz –, os animais rejubilam-se com a promessa de que, doravante, viverão na mais plena e igualitária abundância. Uma nova ideologia, a doutrina do Animalismo, fora estabelecida como fundamento para todas as ações políticas e sociais da fazenda cujo nome alterara-se para Fazenda dos Bichos.
Com a expulsão de Mr. Jones, o antigo soberano, os animais (não todos, somente os porcos) instalaram-se na casa grande onde tiveram acesso a todas as odiosas benesses dos seres humanos. Tudo quanto lhes trazia à memória o Homem era-lhes objeto de ódio: roupas, acessórios, móveis, o retrato da rainha Vitória sobre a lareira, as confortáveis camas dos quartos, tudo. Os porcos, os mais inteligentes dentre os animais, passaram a conduzir demagogicamente a nova realidade político-social da fazenda.
Com os antigos livros didáticos dos filhos de Mr. Jones, os suínos aprenderam a ler e, nos primeiros meses pós-revolução, decidiram alfabetizar os outros bichos da fazenda. Mas estes eram tremendamente estúpidos; alguns eram incapazes de decorar mais do que quatro letras do alfabeto. Para o governo dos porcos, no entanto, bastava que os animais — ou alguns deles — fossem capazes de ler os Sete Mandamentos do Animalismo inscritos na parede de um dos galpões da fazenda:
I. Tudo que andar sobre duas patas é inimigo;
II. Tudo que andar sobre quatro patas ou tiver asas é amigo;
III. Nenhum animal usará roupas;
IV. Nenhum animal dormirá em uma cama;
V. Nenhum animal beberá álcool;
VI. Nenhum animal matará outro animal;
VII. Todos os animais são iguais.
Inicialmente, todos seguiram à risca os princípios do Animalismo. Os porcos, no entanto, sob os pretextos mais esdrúxulos imagináveis, foram, pouco a pouco, descumprindo os mandamentos da revolução. Tão logo falhavam na observância de um dos preceitos, tratavam de, na calada da noite, alterá-lo a fim de que os animais (que tinham memória curta) não desacreditassem da nova conjuntura.
Por exemplo, num dado momento, os porcos passaram a dormir nas camas da casa grande. Os animais, tão logo tomaram ciência do atentado contra o IV mandamento da revolução, correram até a parede do galpão na qual a lei estava inscrita a fim de comprovarem o pecado dos porcos. Poucos sabiam ler e quase todos tinham memória curta; e àqueles que tinham alguma inteligência, como o burro, faltavam-lhes disposição em ajudar, preocupação verdadeira com o outro.
Não sem uma boa dose de sofreguidão, aqueles que podiam começaram a ler a quarta linha dos mandamentos e, quando chegaram ao final, tiveram uma surpresa: IV. Nenhum animal dormirá em uma cama com lençóis. Os animais não tinham certeza se “com lençóis” estava ali antes e, com a explicação dos porcos de que os lençóis eram objetos humanos odiosos, eles foram convencidos a aceitar a ideia de que os porcos podiam dormir em camas — desprovidas de lençóis.
Sob argumentos “científicos” colhidos nos livros e periódicos na biblioteca da casa grande — cujo acesso só era franqueado aos porcos –, os suínos estabeleceram que a melhor e maior porção de toda a comida produzida na fazenda iria para os seus pratos — de porcelana. Os animais foram convencidos depois de lhes ser explicado que os suínos, por cuidarem de todo o trabalho intelectual da administração da fazenda, precisavam da melhor comida.
Com o tempo, o Camarada Napoleão (os animais tratavam-se uns aos outros pelo adjetivo camarada), o porco manda-chuva, passou a ser venerado como um verdadeiro deus; alguém que concentrava em si a personificação da lei e da justiça. As bênçãos e as maldições da vida cotidiana vinham em nome dele. Uma galinha que produzira uma boa ninhada de ovos, disse: “Sob a guia de Nosso Líder, o Camarada Napoleão, eu botei cinco ovos em seis dias!”. O principal aspecto moral dos bichos é uma perda gradativa do senso da realidade. Qualquer semelhança com o miúdo da Coréia do Norte ou com o “Xi Xi Ping” da China é a mais pura verdade.
Semanalmente, os animais eram obrigados a participar de demonstrações civis de honra à memória da revolução. Hasteavam uma bandeira verde na qual um chifre e uma pata perfaziam, quando vistos de longe, a silhueta de uma foice e um martelo. A vida era dura: havia racionamento de comida para todos, exceto para os porcos; os dias de trabalho, que seriam reduzidos de acordo com uma das promessas da revolução, eram mais longos e extenuantes do que foram na época de Mr. Jones. Mesmo assim, muitos dos bichos afirmavam ser gratos à revolução e ao Camarada Napoleão por tê-los liberto do jugo dos Homens.
Nesta fábula, Orwell não critica somente os modelos totalitários do Nazismo e do Comunismo que ele testemunhara em sua época. Não. Ele convida o leitor a observar não só o quadro geral de uma nova conjuntura totalitária para a qual, desde o término da II Guerra Mundial, o mundo caminha. Não. Em sua fábula, Orwell traça o perfil do cidadão que está no centro da nova conjuntura; sua psicologia, sua disposição moral. Este cidadão não só é ignorante, mas moralmente desviado, corrompido; ele aceita ser cúmplice da destruição do seu semelhante porque perdeu de vista a única coisa objetivamente importante: a realidade.
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“Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros”.
— VII Mandamento do Animalismo com sórdido acréscimo
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