As súplicas correntes por “terceira vias” políticas no Brasil são sintomáticas do período de anormalidade que atravessamos atualmente. Contudo, quem diz que gostaria de ver o surgimento de uma “terceira via” política no Brasil usa o termo equivocadamente. A tal “terceira via” já existe e é liderada pelo atual presidente, Jair Bolsonaro.
Em realidade, quem hoje clama por “terceira via”: ou sonha com o aparecimento de uma “quarta via” – algo ainda tão ou mais improvável que o surgimento de uma terceira; ou deseja um retorno às duas “vias” que tínhamos anteriormente. Para entendermos por que é assim e por que quem pensa assim se equivoca, precisamos compreender tanto o que é uma “terceira via” quanto o atual momento político nacional.
Como o poder político é dividido entre um governo (força que detém o poder) e uma oposição (força que almeja assumir o poder), a política eleitoral, de disputa de poder, sempre tende a dois. Frise-se, não é que as forças políticas sejam necessariamente duas ou, pior, que se deva estabelecer um bipartidarismo forçado, por lei. Não é isso.
Por “tender a dois”, entenda-se, simplesmente, que em condições normais os diversos grupos políticos de uma comunidade vão cada vez mais se reunindo em blocos maiores até que duas forças principais passam a dominar o cenário eleitoral. No Brasil, mesmo com o nosso multipartidarismo atual, a dinâmica se repete.
Nos 21 anos entre 1994 e 2014, houve seis eleições para a presidência da República do Brasil. Em comum a todas essas, há o fato de os mesmos dois partidos terem sempre terminado nas duas primeiras posições: PSDB e PT.
Por duas décadas, as duas principais alternativas, as duas vias eleitoralmente viáveis nos pleitos presidenciais brasileiros foram PT e PSDB. Considerando apenas os primeiros turnos, esses dois partidos somados só fizeram menos de 75% dos votos válidos uma única vez em 2002 (69,6%); chegando a compartilhar 90,2% em 2006.
Portanto, com a “normalização” da Constituição de 1988, estabeleceu-se uma dicotomia política no Brasil entre dois pólos opostos liderados respectivamente por PSDB e PT. Esse cenário muda com o surgimento de uma “terceira via” em 2018 – a candidatura vitoriosa de Jair Bolsonaro à presidência.
“Terceiras vias” surgem fora da normalidade. Elas aparecem quando o consenso político sobre quem deva disputar o poder dentro de uma comunidade enfraquece, e as principais forças políticas deixam de ser representativas das divisões internas existentes.
Ausência de normalidade incomoda. Pior, a expectativa de que tal experiência possa se tornar o “novo normal” é angustiante. São esses sentimentos que provocam os clamores por alternativas. É natural ter saudade da normalidade perdida ou ansiar por uma normalidade “normal”.
Todavia, é preciso estar-se ciente de que:
(a) uma volta ao consenso anterior é muito improvável – se não, impossível;
(b) períodos de transição são naturalmente turbulentos, porém temporários;
(c) períodos de normalidade nunca são semelhantes aos períodos de transição que, fatalmente, os precedem e os seguem; e, finalmente,
(d) a qualidade e a duração dos períodos de normalidade estão intimamente relacionados.
Portanto, as razões das angústias, ainda que compreensíveis, não se justificam. A atual situação política é decorrente do fim de uma época. Estamos diante do desafio de estabelecer uma era nova na política nacional. Contudo, essa nova normalidade só será possível com o estabelecimento de um novo consenso.
Quem julga o governo Bolsonaro pelas medidas de normalidade comete uma injustiça. A atual administração federal é, tecnicamente, algo mais próximo de um desgoverno. Afinal, vê-se obrigada a agir dentro de regras feitas dentro da lógica de um consenso do qual não participa; pior, sendo um governo eleito justamente por negá-lo. Bolsonaro não foi eleito para ser normal, mas para romper com a normalidade até então vigente.
Guardadas as devidas proporções, é como julgar um ginete de rodeio com a mesma régua que um jóquei de carreira. Afinal, os dois montam cavalos. Porém, o jóquei cavalga um ser treinado que lhe reconhece a autoridade. Já o ginete está sobre um animal xucro que tenta com todas as forças livrar-se dele. O ginete não tem controle algum sobre a besta com a qual ele tenta lidar.
Da mesma forma que o ginete, só o que Bolsonaro pode fazer é permanecer firme no bicho até esse cansar; é isso ou cair. Essa é a medida para julgamento. O trabalho do ginete, assim como o do presidente, seria mais simples, se o cavalo reconhecesse rapidamente que a situação é inescapável.
O cavalo permitindo que seja guiado, isto é, quando um novo consenso é estabelecido, a necessidade de ser montado por um ginete desaparece. A “terceira via” deixa de ser terceira, para tornar-se uma das duas principais. É nesse momento que os jóqueis podem correr.
Como política tende a dois, “terceiras vias” bem-sucedidas acabam tomando o lugar de, ou sendo cooptada por, uma das duas vias anteriores. Não apenas isso, mas a “terceira via” também acaba por modificar o outro pólo. A nova relação, não sendo mais a mesma da era anterior, acaba forçando a força opositora a ajustar-se – sendo aqui que uma “quarta via” poderia emergir, para tornar-se o outro pólo da disputa de poder.
Quem não se sentia representado no consenso anterior até pode não se sentir representado por Bolsonaro, mas é a presença de Bolsonaro que estabelece a oportunidade para que tal representação seja possível. Logo, trata-se de uma mudança em si bem-vinda.
Agora, é uma questão de trabalhar-se para que a mudança seja tanto efetiva quanto positiva.
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