ENTREVISTA | Socos na cabeça, no quadril e na alma

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Milton Gustavo fala sobre seu romance de estreia 

Em decadência há mais de duas décadas e esquecido em detrimento dos megaeventos envolvendo o MMA, o boxe, esporte que empolgou gerações, e que no Brasil contou com estrelas como Éder Jofre, Maguila e Popó, nunca teve grande espaço em nossas letras.

Isso até agora, pois o grande lançamento do mês de setembro da Editora Danúbio, O Deus oculto no canto do córner, romance de estreia do piauiense Milton Gustavo. A trama, focada na relação entre um treinador aposentado amargurado e um jovem talento em direção ao estrelato, envolve, muito além de socos na cabeça e quadril, fortes golpes na alma.

Confira a seguir a entrevista com o autor.


Revista Esmeril: Fale um pouco sobre você, sua formação como leitor, sua vocação literária e suas principais influências.

Milton Gustavo: Desde garotinho li bastante literatura. Meu pai assinava alguma espécie de clube do livro e também tinha o costume de comprar em bancas os clássicos que eram vendidos por fascículo, nos tempos em que ainda havia em nosso país um público para a grande arte.

Ainda naqueles tempos, de minha adolescência, a “folha ilustrada” tratava de literatura de verdade, e através daquele caderno cultural, pude conhecer José Saramago, Gabriel Garcia Márquez (este último me impressionou bem mais que o primeiro) e muitos outros autores do maistream literário internacional. Das obras de que descobri por conta própria, Paris é uma festa, de Ernest Hemingway, foi a primeira que me impressionou verdadeiramente. São memórias muito sinceras de um período em que o autor, ainda um calouro, conviveu com alguns gigantes da literatura do século XX, como Fitzgerald e Ezra Pound. Curiosamente, eu não sabia quem era Hemingway e li sem sabê-lo. No fim do livro havia uma minibiografia; chorei quando descobri que aquele jovem com tanta vontade de escrever havia, anos depois, já laureado escritor, tirado a própria vida. Enfim, foi uma experiência literária que me ligou aos autores da “Era Jazz” durante toda a primeira juventude.

Posteriormente me interessei pelo romance sociológico francês do século XIX e pelos autores brasileiros ditos “regionalistas”. Li também um pouco dos russos, em especial Tolstói, a quem considero o “Pelé” do romance. Dito isto, os autores com quem mais me identifico são: Stendhal e José Lins do Rego (que curiosamente era um stendhaliano). Como eles, acredito que a literatura é uma experiência da vida, e não meramente da linguagem. De nada adianta a musicalidade das palavras e os delicados florões das orações, se o camarada não tem uma história para contar, e ninguém tem uma história para contar se não tiver maturidade espiritual para compreender a imensa complexidade da experiência da vida, ou pelo menos se esforçar para isso.  

Revista Esmeril: Fale um pouco sobre O Deus oculto no canto do córner, seu livro de estreia na literatura. O que te motivou a escrevê-lo, e como foi o processo de produção?

Milton Gustavo: Alguns amigos, como Alexandre Marques, Pedro Almendra e, posteriormente, Christiano Galvão, Bruno Dutra, Maurício Righi e Eduardo Matos de Alencar, me incentivaram a escrever; os dois primeiros, antes mesmo de ter lido qualquer obra de ficção escrita por mim. Acredito que isso se deva ao fato de que sou um bom conversador e um piadista razoável, talvez seja o que os tenha levado a me incentivar. Escolhi então o tema do boxe porque era de mim conhecido (meu plano original, agora adiado, era escrever sobre a guerra do Paraguai). A partir daí formei um plot que acabou se adensando, porém o ponto de chegada ainda foi o que tinha planejado inicialmente.

Escrevi a maior parte do pequeno romance durante a pandemia, em que o Fórum e a Universidade (sou advogado e professor) permaneceram fechados. Então eu acordava, escrevia uma ou duas páginas, que revisava vagamente. À tarde lia romances e peças de teatro. No período de elaboração do romance, lia especialmente Stendhal, Balzac, Lampedusa e Shakespeare. No fim de tudo, entreguei uma cópia ao Pedro Almendra (crítico e editor da revista Unamuno), que fez uma leitura crítica que me ajudou muito a resolver certos pontos e abrandar a linguagem, que originalmente era um pouco selvagem. Encerrei e reli novamente, fazendo um ou outro retoque. Depois, percebi que o trabalho de correção jamais se esgotaria, então dei por concluído em julho de 2021. Em agosto recebi o aceite da Editora Danúbio, que foi a primeira porta em que bati. A sensação foi um pouco estranha, porque esperava passar um longo período oferecendo os originais e havia preparado minha cara para receber muitas negativas. Enfim, acho que tive sorte no início, meio e fim.

Revista Esmeril: Fale um pouco sobre o título escolhido para seu romance

Milton Gustavo: O título, segundo o grande poeta Ranieri Ribas, é uma “gaita galega”, um decassílabo com acentos na quarta e sétima sílabas, mas eu não sabia disso quando escrevi. Achei apenas bonita a aliteração e, depois que ele me explicou, entendi melhor o motivo de soar tão bem.

Quanto ao conteúdo, ele resume bem a trama do livro. Há um Deus oculto, que separa os dois protagonistas, pois suas diferentes perspectivas quanto à transcendência acabam afetando sua forma de ver a família, a vida e especialmente o esporte. Há uma tensão entre a moral dos gregos, que de certa forma, fundaram as competições esportivas em que o homem se tornava quase um deus, e a cristã, em que somos convidados a ser o último da fila e aproveitar a vida como um dom, não sacrificando-a jamais sob nenhum pretexto e em razão de nenhum projeto.

Lembro-me de uma entrevista, que não sei inventei ou se assisti, em que Nelson Piquet reconhece que o Senna era melhor piloto que ele. Mas ao final, diz algo mais ou menos assim: “Mas também, ele era capaz de bater um carro para ganhar uma corrida. Eu não, jamais arriscaria minha vida para ganhar nada; eu corria Fórmula 1 para pagar minhas contas”. Acho que essas diferentes visões da relação vida-esporte são um dos motes do livro, e isso é revelado sutilmente no título.

Revista Esmeril: Você tem mais obras em produção ou planejadas?     

Milton Gustavo: Estou escrevendo um segundo romance, maior e, por vários motivos, mais ambicioso que o primeiro. É uma saga familiar, a história da decadência de uma família sertaneja. Uma espécie de Gattopardo, sem o príncipe de Salinas, sem os lindos bailes da nobreza siciliana e sem o Garibaldi invadindo o país.

O tema da decadência atravessando a carne de famílias ilustres tem me atraído bastante. É muito difícil explicar o declínio de um povo, ou da Igreja, ou da civilização cristã (seja lá o que isto queira dizer), mas, talvez, e apenas talvez, explicar a decadência de uma família seja possível. Se não for possível, talvez seja ao menos engraçado, especialmente no contexto cafona da grande bancarrota moral e intelectual brasileira. Achei que valeria a pena arriscar algo assim, porque refletir sobre a decadência de pequenos grupos, nos faz pensar sobre a decadência dos indivíduos e, por fim, na nossa própria. Nos ajuda a refletir sobre em que ponto morreram em nós as virtudes de nossos avós e dos avós deles; sobre como não somos testemunhas da queda de Roma, mas sim os próprios bárbaros. Deus me ajude a concluí-lo.


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