ENTREVISTA | Em defesa da gramática

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Professor William Campos da Cruz fala sobre seu livro recém-lançado pela Eleia

Há pelo menos duas décadas e meia o ensino de língua portuguesa passa por uma revolução bastante danosa: não se ensina mais a boa e velha gramática. Aos alunos são empurradas centenas de textos que eles são cada vez menos capazes de compreender, uma carga anormal de teoria sociolinguística e um programa de “ensino da língua com base no aprendizado de gêneros textuais” – que os alunos não conseguem dominar porque não dominam o funcionamento básico da língua materna (porque, de gramática, bem, pincelam-se pontualmente alguns aspectos…).

No entanto, ainda há professores que não se renderam aos modismos pedagógicos e que têm consciência de que, sem um ensino sistemático e ordenado da língua materna, com o passo a passo da gramática (partindo da fonologia até as estruturas sintáticas mais complexas, além da semântica e da estilística), não se formam pessoas capazes de ler e entender textos simples, quanto mais compreender a escrita de um Camões, de um Machado ou de um Rosa, ou produzir um texto retórico básico – exigência do Enem e da maioria dos vestibulares brasileiros.

Um desses professores é William Campos da Cruz, autor de Tudo converge para o texto, livro que reúne artigos seus sobre aspectos diversos da língua portuguesa e de seu aprendizado, e em que ele enfatiza seu posicionamento acerca da necessidade de um aprendizado sistemático e consciente da língua materna a partir dos aspectos mais simples da gramática.

Confira a seguir a entrevista que ele nos concedeu.


Revista Esmeril: Uma primeira pergunta de professor para professor: como você percebe certa tendência – que tem pelo duas décadas e meia – do ensino de Língua Portuguesa na educação básica, com imensa valorização de teorias sociolinguísticas e o ensino de gêneros textuais, enquanto a preocupação com o ensino da gramática diminui sensivelmente?

William da Cruz: O ensino de língua materna sempre é um assunto complexo. Afinal, espera-se que a escola ensine às crianças uma língua que elas já falam. Caberia à escola, portanto, ampliar o repertório delas, explorando a potencialidade expressiva da língua, que se manifesta, sobretudo, nos textos literários. Além disso, cabe à escola também a iniciação na cultura letrada, apresentando toda a diversidade de usos possíveis da linguagem — usos que, muitas vezes, parecem bastante distantes do contexto imediato das crianças. A questão é que as crianças já trazem para a escola a língua que aprenderam em seu ambiente social. Acho importante que os professores tenham conhecimento sociolinguístico e compreendam o fenômeno da variação linguística. É bem possível, por exemplo, que alunos de uma mesma turma cometam erros ortográficos diferentes por causa da variedade linguística que falam, numa tentativa de reproduzir na escrita algo da fonética com que estão habituados. O professor que tenha conhecimento sociolinguístico será capaz de perceber essa interferência e procurará maneiras de tratar do assunto que façam o aluno compreender as diferenças entre a língua falada e a língua escrita.

Mas, atenção: dizer que os professores precisam ter conhecimento sociolinguístico é diferente de dizer que sociolinguística deva ser objeto de ensino. Claro, é perfeitamente possível mostrar que as línguas variam geograficamente, historicamente e socialmente, ainda mais num país como o Brasil, em que é comum que haja pessoas de diferentes lugares na mesma turma. O problema é que, com uma frequência espantosa, entende-se a variação linguística como justificativa para algum grau de “vale-tudo”, para a negligência, para a recusa de ensinar e corrigir. E, neste caso, a escola simplesmente deixa de cumprir o seu papel, por uma razão óbvia: ninguém precisa da escola para aprender as variedades de língua que já aprenderam em casa!

Quanto à ênfase nos gêneros textuais, entendo que se trata de uma tentativa de corrigir um ensino de redação demasiado abstrato, desencarnado. Veja: na vida real, concreta, prática, sempre escrevemos com um propósito em mente, com um conteúdo a ser transmitido, a interlocutores determinados, etc. A única instância em que escrevemos de improviso, sobre assuntos que não dominamos, sem nenhum propósito além da nota e para um leitor que só nos lerá por obrigação, é a escola. Assim, o ensino dos gêneros textuais é uma tentativa de apresentar elementos que, embora não sejam imediatamente identificáveis no texto, contribuem para a sua formulação.

Mais uma vez, entendo que o problema não é o ensino dos gêneros textuais, mas o ensino dos gêneros textuais como fim em si mesmo. E, pior do que isso, parece-me que há uma espécie de inversão da ordem das coisas: discutir gêneros textuais com crianças que mal aprenderam a construir frases simples me parece um contrassenso.

Além de tudo, há um impasse na formação dos professores: os cursos de Letras não ensinam a gramática tradicional, porque partem do pressuposto de que os alunos já devem tê-la aprendido na escola. Então, inundam os graduandos de teorias diversas, muitas das quais críticas à tradição gramatical. O problema é que aquele pressuposto não se confirma na realidade. Um número expressivo de estudantes chega aos cursos de letras sem conhecer a gramática, passa toda a sua formação sem estudar gramática e vai para a sala de aula sem saber gramática. É claro que o ensino de gramática será deficiente!

Revista Esmeril: É possível aprender a ler, escrever e conhecer, aproveitar e apreciar a grande literatura sem conhecer a gramática?

William da Cruz: Minha resposta imediata é não, mas preciso fazer uma ponderação: se digo “A menina comeu o bolo” e sei quem fez o quê, mesmo que eu não seja capaz de indicar conscientemente o sujeito e o objeto direto, eu sei quem são, caso contrário o texto seria ininteligível para mim. Ou seja: um bom leitor, mesmo que não domine a metalinguagem da gramática, já conhece muita gramática.

No entanto, e digo isso reiteradas vezes em meu livro, entendo a gramática como uma das mais preciosas ferramentas de leitura que temos à nossa disposição. Pense, por exemplo, no hino nacional: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/De um povo heroico o brado retumbante”. Meio confuso, não? Não para quem aprendeu a rastrear as relações sintáticas entre os termos da oração. Para estes, é perfeitamente possível reordenar o texto mentalmente: “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico”. Pronto: bastou reordenar a frase em ordem direta para que o texto, que parecia obscuro, complicado, difícil, se tornasse límpido, claro e inteligível. E, bem, o estudo da gramática nos ajuda muito nesse tipo de situação.

Assim, no meu entendimento, analisamos frases simples para aprender a rastrear relações sintáticas; uma vez que este aprendizado se torna um hábito mental, passamos a rastrear essas relações em qualquer texto, incluindo aqueles mais complexos, que, justamente, requererão de nós essa habilidade, de modo que um texto em linguagem literária será mais facilmente compreendido e fruído se formos capazes de identificar as relações entre os termos das orações que o compõem.

Revista Esmeril: Recentemente foi lançado seu livro Tudo converge para o texto. Como surgiu a ideia de escrevê-lo, e como ele está estruturado?

William da Cruz: O livro é resultado de dois anos de colaboração com a página Língua e tradição no Facebook. Quando o Fernando Pestana, professor e idealizador da página, me convidou para ser colunista, encontrei a oportunidade de apresentar minha compreensão do ensino de língua materna. Entre outras coisas, eu insisto em dizer que “Quem domina a linguagem diz o que quer; quem não a domina diz apenas o que consegue”; “é preciso tirar a gramática da gaveta das chatices escolares e colocá-la na prateleira de desenvolvimento pessoal”; “em vez de perguntar se o certo é x ou y, aprenda a se perguntar: é esta a melhor maneira de dizer o que quero, para o público que tenho em mente?”.

Muita gente até escreve bem sem ter estudado gramática, mas, para mim, o critério decisivo é que o estudo da gramática nos ajuda a tomar decisões conscientes, sem depender exclusivamente da intuição. Por exemplo, um texto dinâmico deve ser escrito com palavras curtas e poucas vírgulas. Se, no entanto, a intenção for deter o ritmo, prolongar a leitura, fazer o leitor reduzir a velocidade, a frase pode ser escrita, como acabo de fazer, com muitas vírgulas, reformulações e interpolações. A gramática estimula esse nível de consciência do uso da linguagem.

Revista Esmeril: Há dois artigos em seu livro, referentes à importância do uso dos dicionários. Fale um pouco sobre esse assunto.

William da Cruz: Quando eu era pequeno, frequentava a escola bíblica dominical de uma Igreja Metodista. Na sala dos pré-adolescentes havia uma prateleira com Bíblias, na tradução de João Ferreira de Almeida, hinários e dicionários. Nós éramos incentivados a ler a Bíblia e consultar o dicionário sempre que encontrássemos uma palavra desconhecida. Essa experiência mudou minha vida para sempre! Eu era só um garoto, mas entendi que o dicionário é um poderoso instrumento de emancipação intelectual. Passei a consultar o dicionário com regularidade desde essa época, e ainda o faço até hoje. A leitura não precisa ser um exercício de adivinhação; quando não entendo, ou tenho apenas uma ideia muito vaga, consulto o dicionário. Às vezes, meu entendimento inicial se confirma, o que me alegra; às vezes, descubro que estava no rumo certo, mas ainda impreciso, e isso me traz esclarecimento; às vezes, descubro que estava com uma ideia inteiramente errada, e isso me alegra mais ainda, pois aprendi algo que não sabia.

Certa vez, ouvi de uma professora de português da escola algo de que nunca me esqueci: “O dicionário não é o pai dos burros. É a mãe dos inteligentes, porque sempre acolhe quem o procura; e é necessário ser inteligente para reconhecer quando não se sabe de algo e buscar uma resposta”. Aquilo me marcou para sempre!

Com o tempo, passei a colecionar dicionários e cheguei aos especializados: analógico, etimológico, de sinônimos, de regência, de dúvidas do português, etc. Para mim, é um gesto absolutamente natural consultar o dicionário assim que ouço ou leio uma palavra nova. Com os meios digitais, a resposta está a alguns cliques de distância. Seu vocabulário, sua precisão e sua capacidade expressiva só crescem. O trabalho é pequeno e os benefícios são duradouros. Por mim, haveria até campanha: Use o dicionário!

Revista Esmeril: Você tem planos para novos trabalhos a serem publicados? Poderia falar sobre eles?

William: Eu trabalho no mercado editorial há muitos anos, como preparador e revisor de textos, editor e tradutor. Sempre fiquei feliz ao ver na mão dos leitores livros em que trabalhei. Certa vez, parei ao lado de uma moça que estava lendo uma tradução minha no metrô. Não a interrompi e não falei nada, mas meu desejo era perguntar o que ela estava achando do livro e da tradução. Ainda assim, a satisfação de ser autor é bem diferente. Ainda não faz nem um mês que o livro está em circulação e eu já estou animadíssimo para escrever os próximos. Como as ideias ainda estão num estado muito embrionário, não convém falar delas ainda, mas, se Deus permitir e o público se mantiver interessado, espero ser capaz de produzir ao menos um livro por ano nos próximos anos. A meta é ambiciosa, mas parece-me exequível.


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