Homeschooler Elisa Flemer fala à Esmeril sobre o Sistema que há três anos barrou seu ingresso na USP
Em 2021, Elisa Flemes, uma jovem sorocabana então com 17 anos foi destaque na imprensa nacional após seu ingresso no curso de Engenharia Civil na Poli-USP, para o qual a jovem havia sido aprovada em 5º lugar, ter sido barrado. O problema? Ela não tinha o diploma de Ensino Médio, e a universidade, seguindo a legislação brasileira, não poderia aceitá-la em suas fileiras.
Elisa havia abandonado a escola aos 14 anos, em razão de não se adaptar a um sistema educacional que não permite aos alunos estudar livremente, segundo seus interesses e habilidades. “Fora da lei”, a jovem passou a estudar por conta própria, seguindo seus métodos e preferências, e acabou provando ao Sistema o quão falho e equivocado ele é. Mas pagou o preço: após longa batalha judicial, teve de capitular e adequar-se às normas dos SNE – tomando, é claro, todos os atalhos que pôde dentro de nosso labirinto burocrático.
Hoje, Elisa segue rumos diferentes dos sonhados em relação à cobiçada faculdade paulistana. Continua a estudar por conta própria tudo o que lhe interessa – como línguas estrangeiras, por exemplo – e compartilha a rotina de estudos em sua página no Instagram.
À Esmeril, Elisa concedeu uma entrevista, que em muitos momentos ganha tom de desabafo: o desabafo de alguém justamente insatisfeito com um Sistema centralizador, autoritário e ilógico, feito para matar o espírito e a inteligência, ao qual ela teve de se moldar, ainda que o driblando na medida do possível.
Revista Esmeril: Você largou a escola aos 14 anos de idade. Por quê?
Elisa Flemer: Eu saí da escola principalmente porque eu não me adapto bem aos sistemas tradicionais de ensino. Me incomoda muito o excesso de controle, a rigidez, a inflexibilidade do currículo, que você tenha que passar horas assim. Numa sala de aula tradicional, você consegue ir tão rápido quanto a pessoa mais lenta da sala. Isso é uma coisa horrível de se dizer, porque todos nós somos a pessoa mais lenta da sala em algum momento. Todos nós temos alguma matéria, algum conteúdo, alguma aula em que “o negócio não vai”, e esta é uma situação muito ruim, porque se você está indo bem na aula, você não consegue continuar, você fica entediado porque não consegue continuar aprendendo, e perde motivação por conta disso. Se você está indo mal, fica inseguro porque está vendo que está indo mais devagar que os outros. Você não consegue aprender e fica “com ranço” daquela matéria.
Isso me incomodava bastante: não ter essa autonomia para realmente aprender, para dedicar um tempo maior a determinadas matérias em que eu tinha mais dificuldade, e ao mesmo tempo poder aprender com mais rapidez aquilo em que eu tinha facilidade.
Tanto que, nessa época eu tinha descoberto plataformas de estudos on-line, como o Coursera, o Edx e a Khan Academy, e eu chegava em casa e fazia trigonometria, no sétimo, oitavo ano, porque eu adorava, eu queria ficar o dia inteiro só fazendo trigonometria, que era meu vício na época, e ficava frustrada com o andamento da matemática na escola.
Enfim, ficou desenhada a seguinte situação para mim: essa falta de tempo para estudar o que eu mais queria, por conta da escola, e, principalmente, o tédio de ficar em sala de aula sem poder fazer nada. Ocasiões em que eu terminava a lição no começo da aula e, literalmente, não tinha o que fazer até o final.
Isso tudo foi me irritando de forma colossal, e eu mudei de escola cinco vezes, buscando escolas mais desafiadoras, sistemas em que me encaixasse melhor. Nada funcionou. Sempre tive notas maravilhosas, só que eu não conseguia me sentir feliz na escola, estava sempre muito muito frustrada e apática, e então eu acabei falando para a minha mãe que não aguantava mais, estava na melhor escola da cidade, com bolsa, e não queria mais ir à escola. Ela acabou concordando comigo.
Revista Esmeril: Apesar de deixar a escola, você manteve uma rotina de estudos. Como ela acontecia?
Elisa Flemer: Então, só consegui convencer a minha mãe a me deixar estudar por conta própria porque montei meu currículo inteiro de estudos e mostrei pra ela. Eu basicamente peguei primeiro tudo que o MEC pede obrigatoriamente, e aí juntei aquilo que eu queria aprender por conta própria.
Fiz um curso, por exemplo, do Edx, que é um curso que os alunos de Harvard fazem sobre Justiça, de um ponto de vista filosófico e sociológico, porque era um tema que me interessava muito na época. Era basicamente um curso de nível universitário no semestre, com vários vídeos, gravações, discussões, provas e questões voltadas para analisar situações do dia a dia, grandes experimentos de pensamento da filosofia para conseguir discutir e examinar se um certo evento era ético ou não, segundo os pensamentos de vários filósofos.
Fora isso, fiz muitos cursinhos pré-vestibular on-line, para também ter um contato com as matérias feita para Enem e vestibular em si. Eu estudava de cinco a seis horas por dia, tinha 3 fichários, um de cada cor, e escrevia tudo que eu aprendia lá. Estudava pelo sistema de repetição espaçada, que é um método para você conseguir memorizar conteúdo a longo prazo, em que você vai ampliando o intervalo entre as revisões de matéria que faz, para que ela fique mais tempo na sua memória de longo prazo.
Revista Esmeril: Você passou em 5º lugar em Engenharia na Poli/USP, mas não pôde ingressar no curso por estar “fora da lei”, e atualmente está outra faculdade. O que fez para poder entrar na legalidade e ingressar no curso atual?
Elisa Flemer: Para poder entrar na faculdade atual, eu tive muita sorte. Quando comecei a falar da minha história na mídia, uma escola aqui de São Paulo, o Colégio Horizontes, me deu uma bolsa. Eles são acostumados a lidar com alunos “irregulares”.
Muitos alunos deles, por exemplo, fizeram intercâmbio no Ensino Médio, então, e tiveram que regularizar sua situação perante o sistema brasileiro. Então, como eles conhecem todos os caminhos e atalhos burocráticos brasileiros, os braços e tentáculos do nosso sistema, conseguem fazer com facilidade esse processo de reclassificação.
No meu caso, me deram várias provas para fazer, aí me reclassificaram pro terceiro ano do Ensino Médio e, na época, era pandemia, então consegui terminar o Ensino Médio remotamente em 6 meses, e foi tudo muito tranquilo.
Revista Esmeril: Considerando sua experiência pessoal, você considera justas a legislação brasileira no que toca o mérito estudantil?
Elisa Flemer: Considero essa legislação extremamente limitante para alunos. Até 2017, por exemplo, era permitido que você se formasse no Ensino Médio usando o Enem. Vamos supor que eu, com 12 anos, chegasse lá e gabaritasse a prova. Eu teria direito de ganhar um diploma e entrar na faculdade se eu quisesse. Hoje em dia, não. Eu posso chegar, gabaritar o Enem, mas se eu não tiver feito os três anos de Ensino Médio, tenho que continuar indo pra escola, o que não faz sentido, porque se o Estado alega ser o Enem a prova final do Ensino Médio, que avalia os conhecimentos do Ensino Médio, logo, se eu consegui resultado satisfatório nesse exame, quer dizer que não há necessidade de eu terminar o Ensino Médio.
Mas o Governo tirou essa possibilidade de promoção, justamente porque muitos alunos começaram a fazer justamente isto: ingressar em cursos universitários que eles queriam mais cedo, apenas com a aprovação no Enem. O Estado não quer que você atinja o seu potencial fora do seu controle burocrático. Isso é extremamente frustrante.
Revista Esmeril: Que conselhos você daria para estudantes que, como você, sentem-se entediados ou pouco desafiados na escola regular, mas que alimentam sonhos e têm planos de vida que envolvem o ingresso no ensino superior?
Elisa Flemer: O homeschooling tem que ser uma escolha muito bem pensada, porque, falando com sinceridade, você provavelmente só vai conseguir seu diploma aos 18 anos, fazendo o EJA ou Enseja. Se você não tem pressa na sua vida, ok. Espera fazer 18, aí faz o Enseja, faz um vestibular, e não vai mudar nada na sua vida. Agora, se você é como eu, apressado, creio que vale muito mais a pena procurar escolas que tenham uma filosofia parecida com a sua, que tentem flexibilizar o máximo possível seu processo de promoção, reclassificação etc.
Bravíssima! Que muitos sigam este exemplo.