CONTO丨A Ponte sobre o esquife

Estou aqui, num prédio velho e recém reformado, com preenchimento de gesso nas rachaduras — ao modo de um botox —, logotipos de lírios brancos nas divisórias de vidro e canteiros com arbustos prontos a entranhar nas raízes tocos de cigarros que a velha guarda costuma acender um atrás do outro, como se o ar lhes pudesse danar os pulmões.

As paredes são pintadas com a cor inexplicável que costuma brotar da mistura de restos de tinta predial — rosé ou bege ou acinzentada, a depender da luz e do humor de quem olha.

Adentro o estabelecimento até uma sala mais ao fundo. Cruzo o umbral e encontro o que, no fim das contas, vim encontrar: a sósia de cera de vovó no esquife.

— É uns noventa por cento parecida com ela — concluo.

Todos os meus convivas se tornaram gradativamente assépticos para o maravilhoso e deixei de lhes participar das histórias bizarras, mesmo aquelas nas quais acredito piamente.

Falo de uma lenda do folclore escandinavo ou mexicano… ou… talvez de algum paisinho do oriente… de fato, minto se disser que lembro a sua origem. Mas a história — e é o que importa — diz que tão logo o rigor mortis se instala, abre-se um portal de onde saem três seres etéreos que carregam o verdadeiro morto para uma espécie de tribunal, deixando um sósia de cera — de tipo adipocere — em seu lugar. A história não oferece mais detalhes, mas é provável que o fluir do tempo seja interrompido durante a ação. E, se porventura existir uma pessoa no local junto com o morto, suponho que seu fluxo de percepção e de consciência também sofra um lapso.

É no que eu acredito, e a mim basta. Não peço para que ninguém mais acredite. Mas é a única — ou a melhor — explicação para a sensação de que nosso ente passou, em carne e osso, pelo portal, e todos aqui estão diante de um não-ser de adipocere.

Encosto-me na parede que dá para a cozinhazinha, onde uma prima — a quem o tempo maltratou não menos do que a mim — passa café e o põe numa garrafa térmica azul. Minhas pernas estão cansadas da viagem de carro. Oito horas ininterruptas de direção deixam qualquer corpo ressentido. Como queria me deitar! Tento descansar as pernas com leves puxões nos músculos. Sentar não posso. O cansaço de estar sentado me traz náusea.

— Gabriele, ainda ontem conversei com a vó sobre suas caixas de livros e ela dizia para não tocar em nada, que você mesmo o faria perto do Natal. Que coisa louca é a vida… ela estava se recuperando tão bem… ninguém podia dizer…

— É… setenta e nove anos não é próprio para se morrer, mas… Deus é quem sabe… as caixas você pode doar, Beatriz. São livros da faculdade. Não preciso mais.

É madrugada. Duas e quarenta e três. A boa hora dos antissociais de velório. Cai uma tristeza genuína aumentada pela exaustão — cheia da tristeza por si mesmo e da nostalgia do repouso. A falta de sono deixa o ar mais denso. A percepção vai em câmera lenta. Não me surpreenderia se, num ambiente assim, os três seres etéreos aparecessem para levar mais alguns de nós para o tribunal do além. Bobagem. Aqui nenhum de nós padece de rigor mortis. Sequer de rigor vitae.

Então, como sempre acontece — ao ponto de banalizar o milagre —, os róseos dedos da aurora rufam tambores. E tem início o vai-e-vem dos parentes e conhecidos, e dos conhecidos dos conhecidos — não é demais comentar e já estamos em idade de admitir que pelos vãos do protocolo funeral não raras vezes nasce um emprego, um namorico, a venda do automóvel e até mesmo uma encomenda de creme para os pés.

Quanto mais a manhã avança, mais gente se enfia na salinha. Não há tanta diferença da partida de um navio, em 1900, de um metrô na hora do rush ou de uma boate do DCE. Mas aqui o cheiro é de hálito matinal com chiclete, mofo com talco, café com cigarro e naftalina com perfume frutado…

Afasto-me para um canto, porque minha altura permite-me respirar por cima da massa. Daqui eu vejo bem. Vejo tudo e tudo se resume à morte ser o maior dos constrangimentos.

Num dos cantos da sala, perto do extintor de incêndio, está a matrona de olhos gordos e mãos na cintura, que vigia a observância das regras da decência. Mede cada um com zelo de alfaiate moral: o traje chama menos atenção do que o morto? Certo. Contrai os dedos dos pés para pisar em ovos? Certo. Meneia a cabeça com servilismo e reverência enquanto diz eu sinto muito? Bom. Leva os braços colados ao corpo como nas refeições de avião? Correto. A lista é bem maior do que essa parca amostra de um mau observador…

Quisera a matrona exercer melhor o seu posto. Mas quando a sala se enche de participantes, os pormenores simplesmente lhe escapam como ratos pelo arco das pernas. E um super esforço em sua captura não seria possível sem fazê-la perder a própria compostura. É certo que havendo um sindicato para essa espécie primorosa de ofício, deveria-se estabelecer uma matrona para cada meia dúzia de pessoas, no máximo.

No canto oposto da sala, está uma velhota miúda, sem dentes, de olhos fundos, que masca alguma coisa dentro de bochechas flácidas. Ninguém a nota, mas, de quando em quando, ela ri. Ri de todos, bagaceiramente. Ri da sósia de cera, dos familiares, dos conhecidos, dos conhecidos dos conhecidos, da matrona e ri de mim.

Pertencem ao seu domínio o assoar das trombas de elefante, a cotovelada na costela, o mexerico, a vela a pilha e a cena que me inspira a contar tudo o que conto aqui.

Meu pai está em pé na lateral esquerda do caixão de sua mãe. Tem cinquenta anos, porte nobre e a pele morena dos italianos do Sul. Mantém o braço entrelaçado ao de minha madrasta, dois anos mais jovem e de porte igualmente nobre. O semblante dele é de uma tristeza puída pelo desespero que eclodiu em bolsões nas horas seguintes à perda da vovó. O semblante dela é o de quem já provou da amarga orfandade e ampara o marido.

Julia, minha irmã, chega ao lado da madrasta. Os três passam com folga na avaliação da matrona, que dilata as narinas, cheia de si.

Mas a velhota miúda não deixa barato e saca o supertrunfo: minha mãe.

Chega ao velório e se põe na lateral direita do caixão, de frente para meu pai, para a madrasta e para Julia. E como que animada por cordas de ventríloquo operadas pela velhota bagaceira, começa a ganir e cuincar — não é um choro humano — junto ao caixão.

Os globos oculares dos presentes — besouros num poste de luz — agora orbitam minha mãe, numa atração mecânica pelo escândalo.

Meu pai e minha madrasta abaixam os olhos para o caixão e tentam ignorar o papelão. A matrona de olhos gordos contrai os lábios.

“A ex-nora, coitada, gostava muito mais da sogra do que a atual, que nem um soluço deu”…. “No fundo, a ex sempre foi a nora preferida. A ela que devíamos ter dado ao pêsames”…. É a velha miúda inspirando os cochichos.

Julia dá a mão para a madrasta. Vejo daqui o seu dilema. Não sabe se fica, sustentando a dignidade da esposa — que recolheu os cacos do pai quando nossa mãe não o quis mais — ou se atravessa a ponte do caixão para amparar a mãe ganindo, para, quem sabe, tirá-la dali.

Os gritinhos agudos e apertados são agora todo o som que existe. Saem da boca da minha mãe e da velha miúda que ri. O pai quer desaparecer. A madrasta quer esganar minha mãe e pô-la jazendo ali no esquife da vovó. E Julia não sabe se vai ou se fica. Tampouco eu sei o que fazer e… quando não se sabe o que fazer é melhor não fazer nada.

De pronto, a sósia de vovó começa a se animar… ao ponto de eu questionar se ela é realmente uma sósia ou se é, de fato, o cadáver da vovó. Começa a inchar rapidamente, em vias de se tornar um balão e escapar dali… voar… ascender… não ser pivô de discórdia… cruzar a ponte de ódio sobre o leito de morte…

Finalmente, num outro canto da sala, uma terceira mulher medonha, esguia, pálida, com dentes amarelos — como eu não a tinha reparado até então?! — põe fim à diversão da velha miúda e faz sinal com o indicador para que os funcionários da funerária tampem o caixão. C’est fini.

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