CONTO丨Trago seu amor de volta

“Trago seu amor de volta. 99649-…….. (somente WhatsApp)”

— Droga — lançou o jornal sobre a mesa.

Pôs-se de pé, desamarrotando a barra das calças e esvaziando a xícara a tempo de os funcionários do hotel terminarem de recolher o buffet do café da manhã. Antes de sair, deu uma última olhada no calhamaço de papel que acabara de largar e, por via das dúvidas, anotou o contato do anúncio estúpido.

Caminhou pelas quadras da cidadezinha. Desde que chegara, no fim da tarde de ontem, estava doando sangue às redes sociais, enfurnado no quarto do hotel. O que diabos estava fazendo ali, numa quarta-feira, próximo ao meio-dia, não era do interesse de ninguém, exceto do dono do cartório. Ah, a burocracia… a mais sutil arma de tortura desta antessala do inferno!

O fato é que ainda tinha cerca de quatro horas e meia livres entre extremosas, ruas estreitas, placas de “PARE” e um número de WhatsApp.

— Eu não vim até aqui para fazer macumba… Vade retro!

Mas a curiosidade — esse eufemismo — não cedeu e avançou mais, mais, mais… E, quando deu por si, estava em um banco de bar de esquina, bebendo um chope e escrevendo para o 99649-……

— Pois não, senhor?

— Vi o anúncio no jornal. Preciso do serviço.

— Houve um cancelamento, e o horário das 13h de hoje está vago. O senhor deseja agendar?

— Sim, por favor. Qual é o endereço?

— Agendado. Pagamento somente em dinheiro. Segue o endereço: …

Foi tomado pela ansiedade juvenil, pelo temor da transgressão, pelos goles de chope, pelo nojo de si mesmo e do mundo, pela repugnante esperança…

— É agora. Vou me meter numa biboca.

Sua intuição — sempre falha — dizia que o pontinho no GPS seria um barracão com vidros faltando, tábuas despregadas e mofo por todo lado e… Mas não foi isso, não.

Chegou a uma casa antiga, com resquícios de arquitetura colonial. Um jardinzão na frente, um cisne de cimento cuspindo água para cima na fonte, uma escadaria de três degraus e uma porta de madeira maciça como a barra de chocolate do castelo de um gigante — que ninguém venha acusar este narrador servil de falta de poesia!

A recepcionista era uma adolescente com aparelho nos dentes, três ou quatro tatuagens visíveis, chiclete com cheiro de melancia e carvão nas pálpebras. Dignou-se a levantar os olhos do celular para cobrar trezentos reais e mandá-lo esperar sentado.

“Deve ser ocultismo brabo”, pensou, e temeu o momento de encarar a bruxa.

— Paulo Rodrigues.

Seu nome, com timbre de homem, soou da porta aberta de uma sala.

Cruzando a soleira, nosso herói deparou-se com véus de fumaça de tabaco que pareciam tornar o espaço mais denso; volumosos sofás de couro que escandalizariam sua ex-mulher vegana; estantes orgulhosas; poltronas giratórias; tapetes que emprestavam dignidade a qualquer um que os possuísse; cortinas, papel de parede, abajures e um lustre de casa de governador chorando seus cristais acima de tudo.

— Pois não, Rodrigues — disse o homem ligeiramente abaulado, com uma autoconfiança ofensiva, embalada na camisa champanhe meio desabotoada e na calça de linho cor de chumbo, presa por suspensórios.

Um Marlon Brando recém-saído da película de Don Juan DeMarco não era, de maneira alguma, a imagem aguardada pelo nosso herói, que se sentou, com ombros curvados, na poltrona em frente à mesa do homem.

— Bom, é que eu… — começou, enquanto o grandalhão cravava nele dois olhos de jade e puxava o charuto como se estivesse a encher a boca de torta alemã. — Eu perdi minha esposa.

— Meus sentimentos, Rodrigues. Perdoe a indiscrição: foi morte natural?

— Ah, não. Ela não morreu.

— Não?

— Não. Está mais viva do que antes, eu acho… E… acho que anda saindo com um mau elemento…

— Está deprimido, Rodrigues?

— Não. Bom, um pouco triste, sim. Revoltado também. Mas deprimido? Acho que não.

— E o que o trouxe aqui?

— Quero que o senhor a traga de volta.

— Ah, ah, ah, ah… Impossível! — ribombou a resposta. E aquela autoconfiança redonda, metida em suspensórios, pareceu mais odiosa do que nunca!

— Mas… isso é um estelionato! Quero meus trezentos reais de volta! Eu vi o anúncio! — devolveu nosso herói, decidido a fazer o homem “parir” a esposa de volta.

O sujeito andou em torno da mesa e, com a pressa dos jabutis centenários, abriu um pouco a cortina, espiou pela janela e voltou-se:

— O que dizia no anúncio, Rodrigues?

— Eu li claramente: “Trago seu amor de volta”. Era o que dizia. — Tremia o maxilar, ora de raiva, ora de humilhação.

— Pois é isso o que faço — falou com afetuosidade, ou puro cinismo, sentando-se no canto da mesa e enchendo a boca de fumaça pastosa.

— O senhor está brincando comigo? Acabou de me dizer que não pode trazer minha esposa, e agora diz que seu serviço é exatamente este!

— Rodrigues, propus à maluquinha da recepção — que você deve ter notado e que, por acaso, é minha sobrinha, estudante de marketing — vinte por cento de comissão nos atendimentos. Ela me convenceu a autorizar o anúncio, e não posso reclamar. O consultório tem ido muito bem.

— Mas é um estelionato!

— Não, não é. O anúncio não diz: “Trago a sua amada de volta”, “Trago o amor da sua esposa de volta” ou coisa parecida.

— Mas, então, o que…

— Eu trago o seu… o seu!… o seu amor. Acredite em mim, Rodrigues, você veio ao lugar certo. Está claramente deprimido e jogando seus dias no lixo.

O que aconteceu a seguir, vocês já devem imaginar. Como servil narrador, só posso lhes dizer que, um dia desses, eu mesmo acabei indo até a maluquinha da recepção para desembolsar trezentos reais com o psiquiatra.

Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2025

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor

PHP Code Snippets Powered By : XYZScripts.com