BRUNA TORLAY丨Quando a lei se torna a guilhotina

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Nem tudo que os homens fazem tem fundamento aceitável, elogiável ou legítimo. As leis nos parecem legítimas como fonte de diminuição da discórdia e de penalização de atos injustos, perversos ou contestáveis. Contudo, elas funcionam também como instrumento de destruição de inimigos, adversários ou concorrentes. Esse tipo de lei nos soa abusiva. O seu fundamento original está na ideia segundo a qual as leis não precisam ter fundamento moral para serem… legítimas, ou seja, vale a lei do mais forte porque é a lei.

Como os seres-humanos não são esquilos assustados, tampouco máquinas desprovidas de sentimentos, a reflexão sobre o sentido da vida e o melhor modo de manter uma sociedade funcionando nos conduz a pensar que a justiça é sempre um bom parâmetro, e a lei do mais forte é sempre detestável e odiosa. Por essa razão, muita gente se entristece diante de toda espécie de abuso — seja fora da lei, seja por meio da lei.

Nos próximos dias, o estado de São Paulo verá a assembleia de representantes eleitos para fiscalizar a aplicação correta das leis por parte do governo usar algumas leis à disposição para arrancar o mandato de um colega. Esse colega, longe de ser um completo inútil, é um dos deputados mais produtivos dessa Assembléia, ou seja, um dos mais atentos no trabalho de fiscalização dos deveres do governo do estado. Mas ele estendeu a fiscalização a uma jornalista bem-quista por colegas seus com poder de mobilizar algumas leis, aquelas detestáveis e odiosas, para suspender a validade legal de seu mandato, em total desconsideração para com os 200 mil eleitores que ele representa.

Douglas Garcia é um opositor do governo do estado, encampado por agentes políticos do PSDB, partido tradicional no estado de São Paulo e cuja visão de mundo é partilhada pela sra. jornalista Vera Magalhães. A dita senhora sabe que não foi “agredida”. Os colegas do deputado Douglas Garcia sabem que ele cumpria a prerrogativa parlamentar de fiscalização do uso das verbas do governo do estado ao contestar um contrato (com detalhes curiosos, como um código de serviço não correspondente ao serviço prestado). Mas o que importa é usar o pretexto do confronto com a jornalista para livrar-se, através das leis, de um opositor do governo a que pertencem.

É evidente que há conflito de interesse na cassação do deputado Douglas Garcia. É evidente que seus atos não configuram quebra de decoro suficiente para a perda do mandato. É evidente que a preocupação toda com a jornalista em questão se deve à sua proximidade com o grupo político que dirige a comissão de ética, assim como a Fundação em que ela trabalha. Mas a destruição de opositores e inimigos por meio das leis é uma tendência tão em voga que você não lerá esse tipo de análise nos jornais maiores, por mais óbvia que ela seja.

O curso que treina pessoas para lidar com as leis de um país se chama, aqui no Brasil, “Direito”. O nome da carreira própria aos homens que lidam com leis evoca o sentido primeiro desses intrumentos de organização social chamados “leis”; o sentido de indicar tudo o que preserva uma pessoa de abuso. Ironicamente, a manipulação do quebra-cabeça legal, na versão constitucional ou regimental, é muito mais usado para legitimar o abuso de poder, que para preservar, no Estado, cidadãos das formas mais graves de abuso.

Quando alguém evocar “leis” para você, lembre-se que é a do mais forte que está valendo. Odiosa, detestável e útil como guilhotina asséptica de liberdades inconvenientes.

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