BRUNA TORLAY丨A dificuldade do cristianismo

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Em outubro de 2022, portanto há quase um ano, a editora Ecclesiae publicou a conversa entre Peter Seewald e Joseph Ratzinger, intitulada Sal da Terra, o cristianismo e a Igreja católica no novo milênio. Na época, o papa era João Paulo II e o então cardeal, prefeito da Congregação para a doutrina da fé. Já era reconhecido como o maior teólogo de sua época. Mesmo assim, toda a entrevista é um potente exercício de humildade, matizado pela genuína sabedoria daqueles aptos a dar exemplo.

O exemplo mais legítimo, contudo, é muito difícil de seguir. É fácil dizer “não tenho respostas; tenho perguntas” como afetação de humildade para encobrir uma notória ignorância sobre assuntos muito básicos desconhecidos por preguiça ou indiferença. Difícil é admiti-lo por honestidade sincera, sendo uma das inteligências de quem todos mais esperam saídas, soluções e esclarecimentos, por ter passado a vida as meditando.

É igualmente fácil dizer que se tolera o próximo porque os seres-humanos, por natureza, têm limitações insuperáveis. Quando perguntado sobre o que pensa da inclinação à fofoca dos sacerdotes residentes no Vaticano, por exemplo, Ratzinger diz exatamente isso. Mas ele foi papa, e antes prefeito, e antes arcebispo. Por mérito e sem busca-lo com articulações políticas, foi depositário de algum poder, e consequentemente um provável alvo favorito de maledicências. Mas entende que a intriga existe onde “tantas pessoas vivem tão perto umas das outras e dependem tanto umas das outras”. Mesmo que isso deva ser considerado um mal, prossegue, a visão idealizada do sacerdote, observável no espanto diante da mazela, é o erro inerente ao juízo. A simplicidade da resposta talvez oculte a dificuldade em tê-la alcançado, uma dificuldade de ordem prática e centrada num compromisso.

Não é difícil reconhecer a diferença entre o certo e o errado; mas é difícil praticar um e resistir ao outro. Essa é a dificuldade do cristianismo: o compromisso com a via das pedras, com a prática cotidiana da coerência entre a facilidade de dizer a verdade e a dificuldade de praticá-la. Toda a entrevista nos põe diante de uma pessoa comprometida com o aprendizado da parte difícil da vida. E esse é o encanto da obra, para além do conteúdo edificante que certamente encontramos lá. Uma pessoa que realmente aprendeu algo com a vida, a ponto de nos mostrar como fazê-lo, é o preciso objeto do livro, as perguntas e respostas funcionando como auxiliares do sentido inerente ao discurso central.

Vejo ao meu redor um sem número de recém-convertidos que decidiram repensar a própria existência do Vaticano, a legitimidade dos pontífices e a correção da doutrina sem ter primeiro e longamente meditado a essência do cristianismo – tarefa com potencial para ocupar-nos a vida inteira, como parece ter ocorrido ao maior teólogo de nossa época: Bento XVI. Não por acaso, o seu testamento espiritual retoma ao assunto de sua vida: O que é o cristianismo. A obra póstuma, publicada agora no Brasil pela Molokai, é a última compilação de escritos do então papa emérito, confiados por ele próprio, como explica na introdução, a seu biógrafo Elio Guerriero, para que fossem publicados após sua morte.

Temos aqui uma chance de refletir sobre a essência do cristianismo através da meditação profunda de uma inteligência experimentada e madura, ao invés de nos outorgar autoridade para contestar os sinais exteriores (portanto transitórios e acidentais) da igreja católica, em nome da medíocre soberba desmedida, tão típica em seres-humanos de todos os tempos. Ainda aqui o livre-arbítrio nos leva a escolher, conhecendo a diferença entre o certo e o errado, a rota que efetivamente vamos trilhar.

Ler e entender o que diz Bento XVI é fácil. Mas seguir o seu exemplo, imitação sincera do sumo exemplo, difícil. Como a própria verdade, o Cristianismo é fácil de compreender, mas difícil de praticar.

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