A GÊNESE DE UM COMPOSITOR

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Pedro Henrique Valladão desponta no cenário musical contemporâneo

No último dia 29 de setembro, a OFISA, Orquestra Filarmônica Santo Amaro, fundada e dirigida pela regente Silvia Luisada executou o poema sinfônico Aníbal e Seus Elefantes Atravessam os Alpes, escrito pelo jovem compositor Pedro Henrique Valladão. Naquele momento, o compositor surgiu para o mundo; mas isso não aconteceu de repente ou por acaso.

A história do Pedro começa mais de uma década antes quando, no teclado de casa, causou assombro nos pais. Desde então, eles não mediram esforços para apoiar o visível talento do filho mais velho. Presentes na plateia daquela manhã de domingo, finalmente puderam compartilhar, com parte considerável de suas famílias e uma ampla audiência de apaixonados por música sinfônica, o que até então viviam praticamente sozinhos.

Pedro Valladão com a partitura do poema sinfônico recentemente executado pela OFISA, no dia do concerto.

Muito se fala sobre “restaurar a cultura” no Brasil. Contudo, é preciso sublinhar que, para avançar, o processo depende de artistas, escritores, pensadores, críticos e público. No domínio da música clássica isso já existe. Há cenário, talentos, professores, atores, agentes culturais, equipamentos de formação adequados e, pasmem, público cativo.

A EMESP Tom Jobim, Escola de Música do Estado de São Paulo, é um exemplo de centro de formação musical de excelência. É uma instituição respeitada na América Latina, cujos professores são referência internacional em música; e é justamente onde a trajetória de Pedro começa – no domínio da formação técnica. A história é engraçada.

Um anjo da guarda (ou um providencial estranho num trajeto de metrô) enviou à mãe a dica sobre a existência da escola no preciso último dia das inscrições para o processo seletivo. Não havia tempo o bastante para preparar-se para as provas. Naquela altura da vida, o garoto só tocava “de ouvido”, sem conhecimento da notação musical. Levou as partituras das peças que tocaria na prova prática e as entregou à banca avisando que não sabia ler. Ainda assim, passou no teste e ingressou no primeiro ciclo; inscrito em piano.

Da esquerda para a direita, a regente Silvia Luisada ao lado da mãe, irmão e pai de Pedro no dia do concerto.

Cedo, destacou-se na Escola. Curioso, inscreveu-se num curso livre de cravo. Executou uma peça no instrumento, chamando a atenção do professor Alessandro Santoro. Pedro já integrava o corpo discente da Escola, pelo que não poderia ser pupilo de Alessandro oficialmente. Porém, esse acatou-o como ouvinte, ministrando-lhe aulas de cravo ao longo de um ano por pura boa vontade – ou por intuição professoral que aflora diante de aluno que faz a labuta valer a pena…

Outra feita, aos 14 anos, mostrou ao seu professor de teoria musical uma peça barroca que escrevera. Essa pessoa era o compositor Rodrigo Lima, notável docente da Instituição. Isso bastou para mais um convite a ser aluno-ouvinte, desta vez de aulas de composição reservadas ao quarto ciclo – dois níveis acima do que Pedro cursava à época.

Foi ao longo dessas aulas que Pedro conheceu Noite Transfigurada, de Schoenberg, peça-chave do conjunto de influências marcantes em sua vida. “Mais que compositores, eu tenho peças musicais”, responde à pergunta sobre nomes que mais o inspiraram e moldam seu estilo.

Esteve na Escola por 7 anos até aspirar mudar um pouco de ares. Aceito na Royal Holloway, da University of London, migrou para a Inglaterra aos 18 anos para cursar um bacharelado em música com estudos especiais em composição.

Enquanto o período na EMESP Tom Jobim o marcou profundamente, o período na Royal Holloway obrigou Pedro a enfrentar a composição de uma perspectiva fortemente acadêmica. Ele teve que suportar também certa pressão tácita a adotar o estilo musical contemporâneo, em virtude de preconceitos com o apreço pela música tradicional presentes no mundo acadêmico.

Contudo, é ainda do começo da formação técnica sua memória mais significativa: o único recital em que não errou uma só nota, um só compasso, um só intervalo. Ele sentara ao piano após um momento de bloqueio que o fez desacreditar sua capacidade de tocar as peças a ser julgadas. Ele relata entrar às cegas na sala, tocar sabe-se Deus lá como, e apenas perceber suas mãos trêmulas ao final da performance.

Com Leila Mutanen, sua primeira professora de piano na EMESP.

Àquela altura, Pedro estudava piano com Leila Mutanen, musicista formada pela Escola de Música da UFRJ, que atuou por muitos anos como professora de Piano e Música de Câmara na EMESP Tom Jobim, e uma das professoras mais marcantes em sua vida. Ela estava na plateia no auspicioso domingo em que o poema sinfônico de Pedro foi executado no teatro Paulo Eiró.

O fatídico recital marcou a transição do primeiro para o segundo ciclo. Ele lembra da experiência até hoje com espanto e bom humor. Pedro conta que, ao sair da sala, a professora correu em sua direção e o abraçou, orgulhosa de seu desempenho. Outros professores também o elogiaram, todos impressionados pela “calma” com que tocara na ocasião.

Pedro retornou ao Brasil em outubro de 2023, aos 24 anos, 6 anos depois de sua partida. Desde então, trabalha em suas composições e revela, cada vez mais, dotes especiais para criação de trilha sonora. As portas estão se abrindo a ele por aqui, e a execução de seu poema sinfônico pela OFISA foi decerto apenas o começo.

OBRA

Eu ouço música desde o final da adolescência. Chopin me ensinou a ouvir piano, como Turner a ver pintura. Não é de família, mas um traço pessoal. Amo a excelência em todos os domínios, especialmente o poético.

Naturalmente, apaixonei-me cedo por Beethoven, Mendelssohn, Bruckner, Mozart, Monteverdi, Griec, Dvorák, Tchaikovsky, Haydn, Smetana, Vivaldi, Bach, Rameau, Shostakovich, Mahler e tantos outros. Foi curioso conhecer um compositor jovem, em atividade e ainda distante do reconhecimento dos nomes apontados, durante uma modesta festa de aniversário. Isso aconteceu pouco depois do seu regresso ao Brasil. Ele estava ao lado de seus pais, por acaso amigos de meu marido e, hoje, patrimônio comum a nós.

Conversei com Pedro sobre o período na Inglaterra depois, em outra ocasião familiar: o churrasco de aniversário do seu pai, em maio deste ano. Foi ali que soube do evento que ocorreria em setembro e ao qual me prontifiquei imediatamente a comparecer.

Considerando meu histórico, a última coisa que eu perderia na vida seria a execução de estreia de uma peça clássica por uma Filarmônica na presença do compositor – o qual evidentemente participaria dos ensaios e acertaria, com a regente, a execução perfeita. Não é o tipo de oportunidade que aparece todo dia.

Silvia Luisada mostra a partitura da peça à plateia no dia do concerto.

Aníbal e Seus Elefantes Atravessam os Alpes foi a última música a ser executada naquele concerto. A regente fez Pedro subir ao palco e mostrou ao público a partitura. Em seguida, contou o fato histórico que inspira a peça – a ousada invectiva de Aníbal contra o Império Romano, empreitada cujo gesto icônico é a travessia dos Alpes com suas tropas e elefantes.

Àquela altura, só conhecia algumas das peças para piano compostas por Pedro. Realmente não sabia o que esperar. No dia, as duas peças que antecederam a execução da sua eram de mestres consumados (Smetana e R. Vaugham William); ou seja, se o poema sinfônico não fosse lá grande coisa, o público certamente notaria.

Mesmo uma audiência pouco treinada sabe diferenciar os graus de beleza nas entrelinhas do que escuta. Estávamos no escuro e muito curiosos, até que finalmente fez-se a luz.

Breve, concisa, bem amarrada e criativa, a peça impressionou. Fazia jus aos elogios da regente. Não preciso justificar. Basta ouvi-la. Vale a pena ouvi-la, para dizer a verdade. É uma belíssima peça.  

Foi depois desse dia, sinceramente impressionada pela obra, que pus-me a ouvir o portfólio completo do compositor. Descobri uma sequência esplêndida intitulada Nocturnes, além das peças para piano e uma primeira composição fortemente carregada de Mahler — como Pedro havia dito na segunda conversa que tive com ele. É seu compositor favorito, confessa.

Contudo, se a primeira obra que escreveu parece mesmo uma ode ao compositor do adágio mais célebre do século XX (inesquecível tema da adaptação cinematográfica primorosa da novela “Morte em Veneza”, de Thomas Mann, pelo cineasta Luchino Visconti), as demais avançam pouco a pouco ao nível elevado de autenticidade que notamos na Op. 4, Nocturnes. O poema sinfônico inspirado na travessia de Aníbal é sua obra nº 6, penúltima do repertório já impressivo do compositor, nascido, diga-se de passagem, em 1998.

Pedro diz que não se encaixa nas duas “escolas de composição” predominantes no cenário brasileiro: a carioca, mais nacionalista; e a paulista, mais contemporânea. O segundo estilo lhe é indigesto; e o primeiro, segundo ele, carece de autenticidade.

Pedro evita associar a escola carioca a Villa-Lobos, compositor de maior envergadura, estrela mais brilhante da constelação dos brasileiros:

“Acho que muitos compositores brasileiros tentam ser como ele, mas nenhum, ninguém chegou ao mesmo nível – tampouco eu chegaria a ser como Villa-Lobos; ele é muito ele mesmo, e teve uma sacada genial sobre a música brasileira quando criou o conceito das “bachianas brasileiras”.

Segundo Pedro, Villa-Lobos percebeu que a música popular brasileira, folclórica mesmo, parecia muito com Bach. Exemplifica improvisando um paralelo entre o clássico popular Espinha de Bacalhau e uma suíte para flauta de Bach, sobre a qual afirma: “alterando o ritmo, isso vira um choro”.

Pedro não escuta unidade nas sonoridades brasileiras, mas fusão, mescla e “base em algo muito tradicional – Bach, ninguém menos que Bach, essa herança europeia que nos marca“. Logo:

“Villa-Lobos não estava tentando ser nacionalista do mesmo jeito que um José de Alencar tenta ser, na Literatura; ele simplesmente era ele mesmo e isso vinha com a parte brasileira que tinha consigo todas as influências que ele presenciou, do Brasil, e que formavam a brasilidade dele”.

CENÁRIO MUSICAL

Outro dia, alunos meus que estiveram no teatro Bradesco para assistir à execução da Nona sinfonia de Beethoven contaram sobre a presença de um compositor na apresentação; ali presente porque uma peça de sua autoria seria tocada no programa. Como se vê, a criatividade está por toda parte.

Após tanto tempo fora do Brasil, Pedro começa a acompanhar o cenário e aponta alguns nomes que despertam sua admiração, a começar pelo ex-professor Rodrigo Lima. A despeito de não ser afeito ao estilo contemporâneo, considera as peças de Rodrigo admiráveis; um repertório que contém “as músicas mais digestas dentro do estilo mais indigesto“. Rodrigo Lima, cumpre sublinhar, é um dos mais atuantes compositores de sua geração, e sua música tem sido apresentada em festivais e salas de concertos no Brasil, América Latina, Europa e EUA, com destaque para festivais muito renomados.

O trabalho com a OFISA levou Pedro a conhecer, ademais, Rafael Vicole, regente e compositor dono de um repertório respeitável contendo de orquestra de cordas a música orquestral; de música coral a trilhas sonoras para teatro e cinema. “Uma boa surpresa, não só em termos de trabalho; mas como pessoa”. Por fim, elogia o trabalho de Alexandre Guerra – compositor bastante conhecido, e cuja música, nos últimos anos, tem sido executada regularmente por diversas orquestras, num total de mais de 20, como a Sinfônica de Budapeste, a Filarmônica de Montevideo, e a Sinfônica de Bucareste; além dos belos trabalhos em trilha sonora.

Alma, Amor, e Cultura

Na manhã do concerto, Michele Valladão, mãe de Pedro, contou-me que a regente Silvia Luisada, sem piscar os olhos, disse certeira ao conhecê-los num dos ensaios: “Obrigada. Nós sabemos o quanto o apoio dos pais é valioso para que um músico se qualifique e chegue lá“. O conjunto de histórias que envolve a vinda de Pedro ao mundo é assunto para outro artigo, mas posso atestar que seus pais têm não só orgulho infinito do filho, como também a cultura necessária para ter compreendido muito cedo o valor da paciência, resiliência e generosidade nessas trajetórias. São pessoas de real valor que sabem discernir o que tem valor real. Da avó paterna ao irmão mais novo, Pedro é cercado de pessoas plenamente conscientes do valor da música.

Perguntei a Pedro o que era compor, apresentando a ele os quatro lugares-comuns atrelados à prática: inspiração; engenho; gênio; ou dom divino. Com honestidade límpida e nenhum maneirismo, aplica ao seu caso uma síntese de alguma inspiração e muito engenho, recordando a dificuldade que tinha de perfazer suas primeiras peças, na época em que lhe sobrava inspiração, mas lhe faltava a técnica:

“Quando era mais novo, não conseguia transformar uma melodia ditada pela inspiração em peça musical. Eu começava, mas não conseguia ir além. As músicas ficavam incompletas. Só consegui terminar aquelas primeiras peças quando finalmente aprendi a técnica”.

Quanto ao gênio, acredita que não precisaria ter estudado tanto e aprimorado continuamente a técnica, se fora agraciado por ele. Já o dom divino, prefere descrevê-lo como “predisposição”. Como toda pessoa envolvida em sua arte, Pedro acredita que, com predisposição e empenho, qualquer pessoa poderia compor. Particulamente, não sei.

Para além da predisposição natural à música, muito estudo e uma forma peculiar de criatividade, o traço marcante do artista é um amor infinito pelo caráter poliédrico das formas, para sempre passíveis de modelagem, inversões, atualização e rediviva. Quando essa visão do todo aparece em alguém na forma de intuição natural, determinando sua vocação, temos artistas de verdade. Sempre os teremos, mas é fundamental apreciar aqueles que estão vivos, além de comemorar os que viveram outrora.

Em suma, a alta cultura é simplesmente imortal. Pedro Valladão é mais uma evidência desse precioso fato concreto.

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