VITOR MARCOLIN | Filhos de Abraão

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Gaspar bate em retirada

Abraão de Oliveira tem dois filhos: Ismael e Isaac. Os meninos, porém, não são filhos da mesma mãe. Não importa. Pai e filhos professam a religião judaica, mas isto também não tem importância. O fato relevante é que os Oliveira residem à altura do número 7, na ladeira da Misericórdia, travessa da Conceição, principal logradouro de Itapirá, Goiás. No número 6 vive Gaspar, católico; tido como “devoto” pela comunidade humilde do interior grosseiro do Centro-Oeste. Como uma família de judeus com desfalque de mãe foi parar nos rincões de Goiás é fato sem relevância. O importante é saber, leitor, que Gaspar, o vizinho, é católico — e “devoto”.

Certa feita, Ismael e Isaac danaram a brigar. Era uma disputa por terra. Abraão, um pai cuja qualidade maior era a justiça, consentiu que os meninos brincassem no terreiro, próximos à horta cultivada com esmero — mas com a promessa de uma surra se ousassem profanar as alfaces, os tomates-cereja, os rabanetes, os espinafres, os mirtilos e as cenouras. Assim, a patuscada fraterna corria sob certa tensão. Mas era uma inquietude necessária à ordem. Era sim paradoxal. Ambos os irmãos tinham personalidades assaz diferentes: Ismael era sanguíneo; Isaac, fleumático. A autoridade de Abraão, portanto, impedia que o ímpeto de Ismael, o irmão mais velho, prejudicasse Isaac — menino quase sempre impassível.

Durante a brincadeira, Ismael, ganancioso, encasquetou que o pai dera mais espaço para Isaac brincar no terreiro do que para ele. Não era verdade, e ele o sabia. Mas e daí? O irmão caluniado podia ser menor na idade, mas era perfeitamente capaz de fazer frente a Ismael, se necessário. No entanto, dada a sua personalidade, Isaac procurava levar a coisa a banho-maria. Mas havia limites. Ismael decidiu atacar, estava convencido de que saíra prejudicado na partilha do terreiro. A dinâmica natural do conflito aconteceu como tinha de ser: insinuações, impropérios e vias de fato. Depois de muito apanhar do irmão, Isaac reagiu: lançou mão duma ripa de madeira que jazia caída a um canto, e desceu a lapada calculada no rosto iracundo do irmão, que desatou a chorar. O menino abriu o berreiro. O golpe ardido trouxe-o, à força, de volta à realidade. Chorando, Ismael olhou o terreiro, a horta, as coisas da casa, o irmão… num ângulo próximo, recostado à mureta, Ismael viu Gaspar. O vizinho testemunhara tudo.

“O seu Abraão não vai gostar de saber o que se passou aqui!”. Gaspar, o vizinho, não perdia a oportunidade de exercer o ofício de catequista; mas sua afetação de santidade, seu falso moralismo subtraíam qualquer dignidade verdadeira que o ofício poderia ter. Se é verdade que as pessoas vivem de aparências, também deve ser verdadeiro que há aquelas que fazem de tal estilo de vida uma regra monástica inquebrável que as cega para o mundo exterior. A fama de Gaspar em Itapirá não era só ironia, era sarcasmo. “Santarrão do Centro-Oeste”. Ele, porém, cria-se pio — e, pior, tinha em conta que esta também era a opinião dos outros a seu respeito.

Quando seu Abraão assomou à porta e viu o resultado da confusão no terreiro, quis logo interpelar o filho mais velho. Mas foi interrompido pelo vizinho. Ainda decidido a saber dos pormenores do ocorrido, o patriarca suspendeu sua antipatia por Gaspar e disse: “O vizinho pode fazer o favor de me dizer o que se passou aqui?”. Gaspar, porém, começou mais um daqueles discursos empolados a fim de converter os Oliveira em cristãos-novos. Não prestou. Pai Abraão perdeu a paciência e quis passar o reio em todo mundo. A fazer o sinal da cruz, o santarrão desceu a Misericórdia em disparada.

***


Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2023

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor

CONTO丨Agenda

VITOR MARCOLIN | Quaresma