VITOR MARCOLIN | Conto de Ano-Novo

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Era réveillon. Pouco antes do pôr-do-sol, Carlos, incapaz de negar o instinto que afetava a todos de sua casa, começou a se preparar para a ceia de Ano-Novo. Abandonou o celular na reentrância despercebida do sofá, nicho de sobejos de alimentos bolorentos e outros refugos que atraem magneticamente baratas, formigas e outros seres que não habitavam o Jardim do Éden. E, ao pôr-se de pé, recebeu o primeiro golpe de má sorte que o cacetearia pelas próximas horas: deu com o dedo mínimo do pé esquerdo na extremidade do batente da porta da sala, à altura da soleira. “Olha o palavrão, moleque!, que eu desço o sarrafo na sua boca suja, hein!?”, advertiu a mãe que ouvira, desde a cozinha, o impropério de dor que o filho gritara na sala. “Vê se não estraga a festa, Carlos!”, completou a mulher, mais preocupada com a reputação da celebração popular do que com a falange distal do dedinho doído do rapaz. 

Durante momentos longuíssimos — da perspectiva de Carlos — ele interpretou, com a participação ativa de cada fibra do seu corpo, os passos serelepes do Saci Pererê. Interpretação autêntica. Positivamente autêntica. Cada movimento de pulsação sanguínea produzia agora no maldito dedo de Carlos um latejar digno das descrições infernais de uma Hildegarda von Bingen. A dor, porém, arrefeceu; e Carlos pôde prosseguir com os preparativos para a meia-noite. Ainda mancando, subiu as escadas até o seu quarto — capengava mais pelo trauma do incidente do que pela dor efetivamente —, onde abriu o guarda-roupa e… lá estava ela: a mais alva de todas as camisas de sua pouco modesta coleção.  

Agora, Carlos estava excitado, eufórico; jubilava com a ideia de vestir a camisa cujo branco simbolizava os votos de paz para o ano entrante. Mas na volúpia de vesti-la, deixou cair dois botões que se perderam para sempre sob o pesado armário de mogno. “Carlos!, pára de falar palavrão, menino, que eu subo aí e marco você com a vara de marmelo!”, era a mãe novamente que, na gana de castigar o filho desbocado, esquecera-se de que o “menino” já tinha barba. A um grupo de parentes que chegava, a mãe de Carlos explicava, mal conseguindo disfarçar seu constrangimento, o que acontecera. “Ele já tem idade para viver sozinho. Tem de aprender como é a vida”, disse a mulher para uma parenta hábil em dissimular preocupação genuína em bisbilhotice.  

Contrariado, Carlos teve de vestir um “trapo substituto”. Bateu a porta do quarto e desceu as escadas célere e resoluto, completamente esquecido de que momentos antes quase quebrara o dedo mínimo do pé esquerdo. Embaixo, cumprimentou friamente a maioria dos parentes — exceto uma sua prima mui querida —, e saiu. “Vou buscar a Juliana”, disse ele à mãe, referindo-se à namorada. Antes que sua mãe pudesse completar o segundo suspiro (“será que fui muito dura com ele?”), Carlos volta, abre a porta possesso de raiva e diz: “Onde deixei a droga do meu celular?!”.

Ao passar pela sala, porém, tem um déjà-vu: “Está naquele sofá imundo”, diz ele olhando com desdém para a mãe. “Droga!, o que é isso?!, que gosma é essa?!”, diz ao passar a mão suja sobre o braço do sofá num esforço inútil para limpá-la. “Carlos!, o que você está fazendo com o meu sofá?!”, grita a mãe incrédula. “Menos, mãe, se você gostasse mesmo dessa coisa velha a limparia com mais frequência”, responde o rapaz depois de ter encontrado o celular na concavidade entre o braço e um dos assentos laterais do sofá. O aparelho estava seboso, impregnado da sujeira escondida — e esquecida — da reentrância do móvel.  

Na rua, ele percebe que a mensagem enviada à sua namorada não chegara: “Essa não! Fiquei sem internet!”. O rapaz não resistiu à pressão — e quem resistiria? Atirou o aparelho inútil contra o meio-fio e soltou mais um palavrão. No interior do sobrado, seduzida pelos elogios falsos dos parentes, sua mãe não podia imaginar que o conjunto das reações furiosas de Carlos não constituía outra coisa senão sintomas. Incapaz de dizer “não!” aos afagos daqueles que estavam em sua casa unicamente a fim de colher matéria-prima para a maledicência, ela também não pôde ouvir o som do atrito dos pneus contra o asfalto, dos ossos quebrando em consequência da colisão e do corpo de Carlos colidindo contra o muro do vizinho.

O motorista fugiu, mas, antes de desaparecer na esquina, bateu o veículo novamente; ele era só mais um que decidira aproveitar a atmosfera de celebração a fim de se embebedar — um bêbado anônimo. A convulsão, bem como o choque hemorrágico, durou pouco; aliás, foi brevíssima, pois os traumas eram profundos e irremediáveis. Carlos morreu longe da vista da mãe — e sua namorada o esperava no outro lado da cidade.  

***


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4 COMENTÁRIOS

  1. Vítor, por favor, vai rezar uns 15 Pai-Nosso e umas 30 Ave-Maria. ¡Pelo amor de Deus! Chê, eu também me deprimo nos fins-de-ano; mas não é para tanto.

    Pede ajuda a Deus e à Santa Maria. A Alegria, em maiúscula, está dentro de nós. A gente só pára de percebê-La. Isso passa.

    Um abraço e um ótimo 2024 para ti e para a família.

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