VITOR MARCOLIN | Chuva

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Chovia quando deixei a redação. Mas bastava atravessar a esquina da Brigadeiro Luís Antônio com a Paulista para se chegar à proteção do metrô. Decidi, no entanto, imaginar que eu era testemunha de um dilúvio, e me deixei ficar na esquina, sob a proteção do toldo de concreto do Conjunto Nacional. Eu queria observar os transeuntes que também tinham os seus movimentos afetados pela tempestade. E assim fiz. Inicialmente, concentrei a atenção sobre o aspecto mais evidente do quadro: a pressa. Com um receio exagerado, as pessoas corriam, esquivavam-se, esbarravam-se umas nas outras, pulavam poças d’água, pediam “licença” e “desculpa”, xingavam. Tudo para evitar ser atingido pela água. O esforço era inútil. Porque quem não quisesse se molhar, bastasse permanecer parado, recostado — assim como eu — a um canto obscuro dos inúmeros paredões dos prédios da avenida. Mas não. 

Aquilo me cansou. Continuei a observar as pessoas, mas com a intenção de “ver” outra coisa. Eu procurava descobrir, debaixo de todo aquele aguaceiro, o reflexo moral daquelas criaturas apressadas. Subitamente, percebo uma moça que trazia os cabelos encharcados reclamar por atenção. De modo direto, com a objetividade que só as tardes chuvosas podem proporcionar, ela se aproximou de mim e perguntou em tom de urgência: “Moço, você viu o rapaz da pamonha?”. Não, eu não o vira. Aliás, só naquele momento é que me dei conta de que havia um carrinho de pamonha instalado a quatro ou cinco passos do meu posto de observação. E, de fato, não havia sinal algum da presença do pequeno empreendedor. Percebi também que a moça tinha um pouco de maquiagem preta escorrendo pelos cantos dos olhos. Era uma provável consequência da água que ela não pôde evitar. Aquilo dava-lhe um aspecto triste. 

O que será que ela trazia no coração — ou na cabeça? Será que a maquiagem borrada não era a consequência estética mais evidente de um pranto recente? E se ela tivesse brigado com o namorado ou com a mãe? E se ela carregasse no celular o QR Code da passagem só de volta para casa, depois de ter sido demitida? As verdadeiras respostas foram levadas pela chuva… Fiquei com a certeza de que ela não comeu pamonha. Simplesmente pôs o capuz do agasalho sobre a cabeça, esperou algum tempo pelo verde do semáforo, e disparou para o metrô Consolação. Abandonei as conjecturas sobre os momentos pregressos da moça quando ouvi, aborrecido, os palavrões de um rapaz que reclamava da chuva: “Caramba!, mano, comprei essa porra esses dias”. Imagino que ele falasse do celular molhado. 

Por fim, vi passar duas garotas que pareciam nutrir grande amizade recíproca. Uma das confidentes vestia roupas assaz largas, e parecia não dar a mínima importância para a tempestade. Ela encarava sua companheira com certa altivez, um quê daquela ousadia que geralmente se atribui a um namorado temerário. Elas não chamariam atenção alguma, creio eu, se não tivessem soltado gargalhadas depois que a amiga das roupas largas tirou de sua bolsa um guarda-chuva cor-de-rosa. A cor do acessório provocava um impacto maior do que o rimbombar dos trovões. Há pessoas que, devotamente, escondem para si as suas autenticidades só para tê-las expostas à influência de um mero gatilho. Obtive a prova desta impressão ao observar uma mulher aparentemente elegante xingar até submergir no metrô — ela havia molhado os seus sapatos numa poça d’água. 

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