VITOR MARCOLIN | Bater ponto em dia de greve

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

A descoberta de Heitor

“Chuva. Como se a greve não bastasse”, disse Heitor ao se ver obrigado a descer três estações antes da paragem habitual. Seu mau humor, porém, não foi suficiente para vencer o automatismo da multidão: saiu do comboio a passos curtos, encolhendo os ombros e pressionando contra o abdômen a bolsa transversal de couro — “caríssima”. A multidão, como uma quimera bovina, movimentava-se vagarosamente, engolindo quaisquer criaturas dispersas sobre a plataforma. Na paragem do metrô, individualidade é revolução; e revolução, como prova a História, só pode ser combatida com a indolência dos conformados: a massa fétida saída do comboio. São bovinos bípedes que calçam sapatênis, vestem calças jeans e camisas tipo Polo; fixam os cabelos geralmente crespos com gel abundante, e enlouquecem quando se veem livres dos seus antolhos. Eles os usam não nos olhos, senão presos às orelhas, e os chamam “fones de ouvido”.

A quimera, tão logo percebe a presença de um ser livre, engole-o. Sem cerimônia, sem esboçar quaisquer movimentos sutis, encurrala-o contra a parede de algum corredor, à entrada ou saída de escadas rolantes, à porta de elevadores… os limites do metrô determinam as fronteiras do habitat da quimera. Heitor sabia que um meio eficiente de ludibriar o monstro era se deixar vencer pela inércia, pela lerdeza dele. “Que se dane!, vou chegar atrasado; tô nem aí”, disse Heitor enquanto obtinha o direito de usufruir um assento na plataforma do metrô. E lá se foi a massa fétida. Heitor reconquistara a sua individualidade.

Agora só havia alguns poucos indivíduos na plataforma. Não haveria outro comboio. Heitor teria de seguir a multidão e penetrar virilmente em um dos ônibus que, em dia de greve, prestam-se a ajudar no transporte da quimera. Em São Paulo é assim que acontece. Em diversas outras metrópoles do país, no entanto, a situação não é mais favorável. No Rio, a antiga Côrte, há inclusive um agravante: o calor. Sobre os mesmos rastros de trilhos que uma vez serviram ao Imperador, a quimera carioca suporta, calada, as altas temperaturas da “Cidade Maravilhosa”. Neste caso, porém, o silêncio não é evidência de virtude — cardeal nem teologal —; pois os elementos que perfazem o monstro, isto é, os indivíduos, blasfemam baixinho, sussurram palavrões, impropérios dignos de zona meretrícia. Tudo abafado pela massa fétida. Por fora bela viola…

Heitor viera de Itapirá, município perdido nos rincões de Goiás. Vivia em São Paulo porque disseram que nesta cidade pagava-se bem, e ele acreditara. No Centro-Oeste, a vida se era mais árdua, era também mais limpa. Não era árdua coisa nenhuma! Heitor, homem comum, pouco instruído, habituara-se a crer em tudo quanto ouvia falar. Mas com uma ligeira modificação somente: a chancela tinha de vir da tevê, da mídia, dos narradores oficiais. Pobre Heitor. Homem iludido. Homem comum.

Sua única virtude era a derrota que, vez ou outra, conseguia impor à quimera: às vezes, como neste dia, desiludido com as promessas dos grevistas e caceteado — descabidamente — com a chuva, decidia atrasar-se para o trabalho e permanecer com os glúteos sobre o banco da plataforma do metrô. Mas eram louros caros demais para o goiano perdido nos Campos de Piratininga. Não era vitória, era ilusão. Que lhe importavam as reivindicações dos grevistas? Que lhe importavam as declarações do governador? “O que eu tenho a ver com isso?”.

Na superfície, a chuva cedeu lugar aos raios de sol que sinalizavam o fim da manhã. Heitor havia excedido todos os limites do cronômetro do equipamento que registrava a sua digital. “Bater ponto é o carago!”. O homem descobriu que pensava melhor longe da multidão.

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