VITOR MARCOLIN | Placa de Brasília

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

A desforra de Afonso

O leitor já deve estar habituado a ler os diálogos redigidos pelo confrade Paulo Sanchotene na sua coluna “Conversar é pensar junto”. Hoje, no entanto, peço licença ao talentoso colega de redação, pois não posso furtar-me o dever de mostrar ao leitor uma situação peculiar — típica do ambiente urbano – que chegou até mim também sob a forma de um diálogo. 

***

O que motivou o sujeito a chamar um carro via aplicativo ao invés de subir num dos comboios da antiga CPTM? Provavelmente, a chuva. Era o mês de janeiro mais friorento e chuvoso que ele se lembrava. Pegou o celular e desbloqueou a tela praguejando: estava com as mãos molhadas! A chuva cedera lugar a uma garoa fina, constante, implacável; e, ao desarmar o guarda-chuva, portanto, o sujeito molhou as mãos. E por isto praguejara ao manejar o touch screen do celularzinho da maçã. Sujeito superficial, fresco.

O carro chegou.  

— Boa tarde! Afonso?  

— Isso!  

— Pacaembu?  

— Isso mesmo! 

— Pode entrar, seu Afonso, fique à vontade.  

— Obrigado.  

— Friozinho fora de época, não é, seu Afonso?  

— Pois é.  

— O senhor tem preferência musical? Quer que eu troque de estação?  

— O quê?! Caramba!, nem percebi que o rádio estava ligado. Pode desligar, por favor?  

— Claro.  

O motorista do aplicativo, experiente, poderia ter seguido por um itinerário ligeiramente diferente daquele determinado pelo GPS, mas, pensando em agradar ao seu cliente, não saiu meio centímetro da rota. Como resultado, ficaram presos no trânsito de uma importante avenida.  

— Droga! Você acha que vai demorar?  

— É, meu patrão, tá complicado hoje. É o clima. Como se diz aqui em São Paulo: “choveu, f*deu!”.  

Dentro do carro com as janelas hermeticamente fechadas fez-se um silêncio constrangedor. O motorista, numa tentativa de se desculpar pelo palavreado, tentou desconversar, invocar novos temas para o diálogo malfadado.  

— O ar tá bom, patrão?  

— O quê?  

— O ar-condicionado. Quer que eu diminua? Tá frio lá fora.  

— Não. Assim tá bom.  

— Tá certo. Vou ligar o rádio. Ficar parado aqui é osso!  

— Tudo bem. O sinal de internet aqui é péssimo.  

— Deve ser a chuva, patrão. O engraçado é que nada nesse mundo interfere no sinal de rádio. É verdade. Pode ser a maior chuvarada, pode cair o maior pé-d’água que o rádio continua funcionando direitinho. É assim desde que eu era criança, lá no Centro-Oeste. 

A chuva recrudesceu, e o impacto dos pingos grossos sobre a lataria do carro soava como um melancólico sinal de que o veículo não sairia tão cedo do impasse do trânsito paulistano.  

— O senhor soube do ocorrido em Brasília, seu Afonso? 

— É, ouvi falar, mas eu não me preocupo mais com essas coisas. 

— A coisa foi feia.  

— Não duvido. Mas tanto faz, o país já era. 

— O senhor acha mesmo que isso aqui vira uma Venezuela?  

— Não sei. Acho difícil. O pessoal fala muita bobagem.  

Afonso largou o celular, olhou através da janela e respirou fundo, como se a tomar fôlego para mergulhar numa discussão; coisa que ele já havia se libertado. “Não quero entrar em outro debate estúpido!”, disse Afonso de si para consigo.  

— É, meu patrão, os comunistas finalmente vão tomar o país, vão manchar a nossa bandeira de vermelho.  

Como a velocidade da luz é muito superior à do som, primeiro viu-se o clarão do raio quando atingiu o pára-raios instalado no topo de um prédio próximo, depois ouviu-se o trovão cujo ribombar fez estremecer o carro.  

— Minha Nossa! Tá vendo, seu Afonso?, São Pedro também é anticomunista. Hahahaha!  

— Pelo amor de Deus!, CALA A BOCA!! Eu não suporto mais ouvir falar sobre política, merda! O senhor parece besta! Em tudo bota política. Em tudo! Escuta aqui, se o Bolsonaro disser pra você meter a mão no buraco d’um formigueiro, se não o PT volta (Afonso fez aspas com os dedos), você mete? Se o Lula mandar você meter os beiços num capinzal e comer tudo, e depois defecar pra fazer adubo, você obedece? Acorda, homem! E digo mais, faz favor, e digo mais: quanto deu essa droga de corrida? Toma aqui uma nota de 50. Agora destrave a porta que eu vou embora. Anda!  

O motorista do aplicativo fitava o seu cliente com os olhos arregalados, e, com a voz meio embargada, disse: 

— Calma, seu Afonso! Calma! Sua corrida deu 28 Reais, mas nós ainda não chegamos. O senhor vai sair na chuva? 

— Sim! Abra a porta, se faz favor!  

— Pois não. Mas antes devolvo o seu troco. Deu 22… Olha, hehehe o número do Bolsonaro… 

Afonso saiu do carro furioso. A chuva era implacável. O pobre coitado levou um tombo apoteótico e deu com a cara no pára-choques do veículo. A placa era de Brasília.  

Fim


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4 COMENTÁRIOS

  1. Hahahahaha!!! Não precisas pedir licença para escrever diálogos na Esmeril.

    Muito engraçado, mas o sentido passou por cima de mim como helicóptero de magnata paulistano!

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