RESENHA丨Um lugar silencioso

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Carregado de referências simbólicas sobre os nossos dias, o filme destoa das produções comercias de Hollywood pela qualidade e profundidade da narrativa

Desde O regresso (The Revenant), de 2015, eu não assistia a um filme tão bom. Lembro de ter me impressionado com a fotografia, a ambientação histórica e a narrativa que apresentava o choque de civilizações sem a maquiagem do politicamente correto. O engajamento do DiCaprio nas causas ambientalistas não o deixou cafona nas telas; ele segue direitinho o roteiro e as ordens do diretor. O longa metragem cuja estreia acompanhei, Um lugar silencioso (A Quiet Place), foi melhor.

Um lugar silencioso conseguiu atingir um ponto de equilíbrio entre os efeitos especiais, a ambientação e um nível de simbolismo incomum. Eu digo incomum por dois aspectos: primeiro, os filmes produzidos por Hollywood nos últimos anos prezam antes pelo impacto comercial, imediato que a trama, frequentemente superficial, pode render, do que pelas possibilidades de reflexão sobre qualquer situação existencial real. Claro. Depois, é comum que filmes comerciais apresentem uma dimensão simbólica tão profunda quanto a presença dos slogans do McDonald’s ou da Coca-Cola inseridos subliminarmente em algum canto da tela.

Não foi o que eu vi em Um lugar silencioso. O filme, em suma, faz referências simbólicas ao estado de coisas atual. A chegada súbita da pandemia, simbolizada pelas criaturas assassinas que caem do céu; a imposição de uma nova rotina na vida das pessoas, que passam a viver isoladas; a condição de silêncio absoluto, sem o qual a vida, já gravemente afetada pelo isolamento, torna-se praticamente impossível; a realidade da adaptação à ausência da tecnologia, o grande trunfo é o bom e velho sinal de rádio que tem a extraordinária vantagem de vulnerabilizar as criaturas assassinas, expondo-as à morte. O filme é ambientado nos nossos dias, o curioso é que a salvação está no sinal de rádio, não no 5G de internet.

É claro que os conflitos humanos estão presentes. Os filhos do casal Abbott enfrentam o caminho para o amadurecimento, a filha mais velha Regan, que é surda, é quem descobre um jeito de livrar-se dos monstros, depois que o pai morre heroicamente para salvá-los. A mãe, a brava Evelyn, torna-se a responsável por proteger a família; sua coragem desperta no momento em que ela da à luz a um bebê que, para protegê-lo da morte, coloca-o num baú sempre quando as criaturas espreitam, atraídas por qualquer ruído. O filho mais velho Marcus Abbott, com muita dificuldade, encontra a maturidade; a cena em que ele se vê na posse de um aparelho de rádio (para confundir a criatura com a frequência do sinal) e um revólver, com os quais, depois de tanto hesitar, mata um dos monstros, simboliza o seu efetivo amadurecimento. Um lugar silencioso (parte I e II) fala de sobrevivência, heroísmo, cumprimento do dever e senso de sacrifício.

A principal mensagem do filme dirigido por John Krasinski (que também atua; ele interpreta Lee Abbott, o pai da família), é a da importância do domínio da linguagem para a efetiva manutenção da vida. A guarda do silêncio absoluto é o fator que impede que os monstros de origem extraterrestre os encontre, mas o domínio da linguagem, cujo símbolo são as referências à língua de sinais, é o que garante que esta vida sob opressão tenha um rumo, um propósito. A família Abbott, que vivia numa fazenda, para se comunicar com Regan, a filha deficiente auditiva, já dominara o código da linguagem de sinais antes da chegada dos monstros, todos sabem se comunicar sem a necessidade de usar palavras. Em um mundo no qual silêncio é sinônimo de vida, saber falar sem usar palavras é fundamental. Em função desta vantagem, a família consegue manter um relativo estado de desenvolvimento, de subsistência na fazenda. A comunicação é eficiente. Enquanto os sobreviventes da região vivem no mais completo isolamento, passando fome e toda sorte de dificuldades, os Abbott vivem em relativa bonança, tudo porque se comunicam com eficácia.

“Quem somos nós, se não pudermos protegê-los? Quem somos nós?”.

Regan Abbott.

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