SANTO CONTO | Toninho

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Livremente baseado na história de Dom Anthony Bloom

Toninho possuía uma inteligência muito acima da média e uma chatice proporcional à sua inteligência. Filho de “livres pensadores” agnósticos, sempre com algum livro a tiracolo, aos quatorze anos havia atingido o status de insuportável entre os colegas de escola, os professores, os primos, os vizinhos e, enfim, quase todos que eram obrigados e conviver com ele. Mas tinha lá sua roda de camaradas, uns universitários ateus convictos como ele, companheiros de longos debates intelectuais em que o adolescente sempre se sobressaía.

Entre os milhares de tópicos tratados nas conversas do grupo, o mais frequente e favorito, e para o qual inevitavelmente eles sempre se encaminhavam, era a religião – mais especificamente, o cristianismo. Repetiam com gosto e mordacidade todos os clichês anticristãos que absorviam de tantos e tantos pensadores modernos, e não se cansavam dessa brincadeira, que parecia dar-lhes sempre mais ânimo. E Toninho, como de costume, era o mais apaixonado e categórico, e, com uma tirada espirituosa sempre fechava os debates com chave de ouro.

Muito admirado por aqueles seus camaradas e sobretudo por si mesmo, um dia Toninho resolveu que iria provar a falsidade dos Evangelhos e a inexistência de Jesus Cristo, que, conforme ele comprovaria, não passava de um personagem literário de velhas lendas e superstições de povos antigos. Já havia traçado todo um plano em que se via demolindo a velha crença encarquilhada. Ele iria mudar os rumos da História – aliás, iria mudar o mundo.

Só havia um problema: ele jamais havia lido um versículo sequer de qualquer um dos Evangelhos e, até onde lembrava, não havia Bíblia em sua casa. Resolveu então recorrer ao avô, um homem piedoso cuja insistência havia conseguido dobrar o filho e a nora e fizera com que o neto fosse batizado. Um homem que, apesar de suas “superstições medievais”, Toninho admirava muito, e por quem tinha grande amor. Numa visita breve, pediu ao velho uma Bíblia emprestada aproveitando para perguntar ao avô qual dos Evangelhos era o mais curto – tinha pressa.

– O de São Marcos – disse o velho entregando ao neto uma edição Ave Maria que havia pertencido à esposa falecia havia dois anos – É bem curtinho, um prodígio como você vai devorar em minutos.

Sem dar bola ao sarcasmo do avô, o rapazola agradeceu e saiu meio encabulado, tentando disfarçar o volume que enfiou debaixo da camiseta tão logo virou a esquina, enquanto o velho sorria e acenava do portão de casa. Foi para casa entusiasmado.

Chegou em casa ainda escondendo a Bíblia sob a roupa e se fechou no quarto. Olhou com desdém a encadernação marrom fechada com zíper e a abriu logo, dando umas folheadas aleatórias nas numerosas páginas. Viu que muitos trechos estavam grifados com marca-texto, e também reconheceu a letra miudinha da avó em diversas anotações nas margens das páginas. Lembrou com carinho e pena a avó, “tão querida e tão iludida”, pensou, “mas agora eu vou poder ajudar muitas outras como ela!” E, na sua ânsia de “acabar com tantas mentiras e engodos”, pôs-se a ler o livro de São Marcos.

Aconteceu, no entanto, de ele travar enquanto lia o enxuto Evangelho logo nos primeiros versículos, ainda na pregação de João Batista. De alguma forma que não sabia explicar, aquelas palavras pareciam querer lhe dizer algo. Ficou tempo pensando naquilo, intrigado, até que continuou a leitura, mas travou de novo no Batismo de Jesus, e pôs-se a meditar outra vez. Estava confuso. Jesus Cristo, o homem que se apresentava ali a ele, não lhe parecia o personagem ficcional a que ele se referia com tanto desprezo tantas vezes, nem aquele relato lhe soava como “a pior das fanfics”, como ele chamava a Bíblia. Assim, foi consumindo devagar aquele Evangelho, parando sempre para meditar enquanto também lia cada uma das notas de rodapé e anotações deixadas pela avó.

Só quando terminou a leitura foi que percebeu que não vira as horas passarem. Estava imerso em São Marcos havia um bom tempo. E não era mais o mesmo. Enquanto lia, começara a ter cada vez mais nítida a sensação de que Aquele sobre quem estava lendo estava ali com ele em seu quarto.  Agora, tinha certeza. Havia travado um conhecimento profundo com o Filho de Deus. Meditou por um tempo sobre o que estava acontecendo consigo e, com a sofreguidão de um neófito, devorou os Evangelhos de Matheus, Lucas e João noite adentro. Encantado com cada um dos relatos da vida de Cristo, acabou não dormindo.

Pelas semanas seguintes, ainda carregando a Bíblia escondida numa mochila, Toninho foi devorando o livro todo, desde o Gênesis, agora com sua natural rapidez de leitura, mas aproveitando cada palavra. E, conforme dúvidas lhe foram surgindo, ele às escondidas consultava um padre – com que foi travando amizade filial – numa paróquia afastada.

É claro que na escola, em casa e entre seu grupinho de livres pensadores iluminados todos perceberam as mudanças em seu comportamento. O jovenzinho falador e arrogante tornara-se um caladão tímido e introspectivo. Professores e colegas de escola deram graças a Deus; os pais suspeitaram de uma possível paixonite; os camaradas iam estranhando suas cada vez mais frequentes ausências aos encontros do grupo, e seus silêncios e meios sorrisos logo que se começava a alfinetar o cristianismo. Não demorou muito para que ele se afastasse cada vez mais e aquela roda se transformasse em ex-amigos. O avô também percebia as mudanças, mas ficava quieto.

Quando o rapaz estava para completar quinze anos, já havia lido a Bíblia de cabo a rabo, e alguns livros ele relera várias vezes – seu preferido, obviamente, era o Evangelho de São Marcos, com que conhecera Jesus. Frequentava umas Missas, ainda às escondidas, e com frequência se aconselhava com o amigo padre. E foi com certo pesar que num sábado de manhã foi à casa do avô devolver o Livro Sagrado.

O velho tinha uma rotina imutável. Acordava pontualmente às quatro e ia varrer o quintal, depois a calçada, ensacava as folhas que juntava e então entrava para preparar seu café da manhã: três ovos fritos na banha ou na manteiga gorda, e uma caneca de café bem preto e grosso como tinta. Depois, com uma segunda caneca que ia tomando bem devagar, sentava numa cadeira na varanda e ficava vendo o dia clarear enquanto lembrava dos momentos com a esposa. Pensava nela quando o neto pareceu no portão:

– Caiu da cama, guri?

– Oi, vô – o rapaz se aproximava um tanto desajeitado, estendendo o volume que não fazia mais questão de esconder – vim devolver sua Bíblia.

– Não é minha – o avô fez um gesto de recusa –, é sua. Presente de aniversário. É daqui uns dias, não é?

– É… – Toninho sorria encabulado, mas seus olhos brilhavam – Obrigado, vô.

Então, sentou-se numa cadeira ao lado do avô e ficaram os dois calados por um tempo, até que ele falou “Sabe, vô, preciso te contar umas coisas…”

E contou toda a história dos últimos meses. O velho escutava quieto e impassível, mas sorrindo por dentro. Quando o neto terminou, ele lhe deu uns tapinhas no ombro e falou olhando para um horizonte que só ele via:

– Muito bem, guri, muito bem.

– E eu, vô – o menino agora sorria –, eu planejava “mudar o mundo”, veja só!

O velho lhe deu mais uns tapinhas no ombro e respondeu em pensamento:

– Mas você já mudou, garoto. Você já mudou.


6 COMENTÁRIOS

  1. Sua escrita sempre inspirada, é uma Graça Divina. 🙏 Parabéns por conseguir exercer sua vocação. 👏👏
    Agradeço por compartilhar conosco as suas pérolas.
    Boa semana.

  2. Obrigado pelo texto que nos presenteou caro Sr. Leônidas, fez-me lembrar de uma frase de Santo Agostinho “compreender para crer, crer para compreender”.
    Até o próximo conto, forte abraço.

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