SANTO CONTO | O último profeta

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Livremente baseado no martírio de São João Batista

I – A humilhação

Herodes gostava da pregação de João Batista, e com frequência ia ao Jordão para escutá-lo. Ainda que fosse uma ocasião de grande embaraço para si – pois conhecia bem seus muitos pecados, contra os quais não estava disposto a lutar –, o rei passava por cima de seu orgulho e ia. Aquele homem excêntrico, vestido com pelo de camelo e uma tira de couro cru à cintura, era para ele inofensivo, e o divertia. E as palavras do Batista agradavam ao velho monarca, sem que no entanto lhe entrassem no coração, muito mais duro que as imprecações do profeta.

Naquela manhã, no entanto, o rei cometera um erro imperdoável. Levara consigo a mulher – esposa roubada de seu irmão. Herodíade possuía uma beleza notável, que Herodes havia tempo já cobiçava, e à qual não resistira, arrebatando-a para si sem pensar duas vezes logo que lhe surgiu a oportunidade.  Mas é bem verdade que o encanto durara pouco. A senhora era caprichosa e volúvel, cheia de vontades, e de um azedume e ranhetice que já andavam deixando o monarca bastante cansado, arrependido mesmo da sua precipitação. E foi justo naquele dia que o capricho dela foi querer acompanhá-lo ao rio para ouvir João. O monarca, ao vê-la toda produzida e pronta para sair, logo compreendeu tudo, e aceitou o fardo com um suspiro resignado.

Agora, lá estavam os dois à beira do Jordão, em uma luxuosa liteira, cercados de nobres e empregados, a passar por uma enorme humilhação pública. O profeta correra para eles tão logo vira a comitiva real, e não poupara palavras. Chamara-os de adúlteros e desavergonhados e, com olhos furiosos, imprecara contra Herodes:

– Arrepende-te de tuas faltas e separa-te dessa mulher que não é tua! Vives em pecado com a mulher de teu irmão, e isso é abominável aos olhos de Deus! Arrepende-te, jejua e te cobre de cinzas, filho do mundo!

João então olhou para Herodíade, mas ela desviou os olhos e cobriu-se com um manto. Irada, ordenou que a comitiva seguisse. Seu coração fervilhava de ódio. O de Herodes também, mas ele se mantinha mudo e pensativo enquanto escutava os esconjuros da mulher, em meio às risadas abafadas e comentários maldosos dos nobres e empregados em volta.

II. A prisão

Aquela humilhação exigia de Herodes uma atitude. Ele virara motivo de piada entre os nobres e o povo. Ainda assim, relutava. Mais por superstição que por temor a Deus, não ousava mexer com Seus profetas.  Preferiu, pois, deixar as coisas como estavam. Mandou prender o Batista e planejou para as semanas seguintes um grande número de suntuosas festas.

Era um bom plano, sem dúvida, mas que não arrefeceu a ira de Herodíade. Para ela, ainda que o Batista fosse posto a ferros e sofresse as piores torturas, isso não repararia a humilhação que sofrera. Apenas a morte do profeta a deixaria satisfeita.

III. A festa

Passado algum tempo, as coisas no reino pareciam ir voltando à normalidade para Herodes. As festas que ele havia planejado iam inebriando a nobreza a ponto de a humilhação diante do profeta do Jordão tornar-se uma lembrança vaga e sem importância. Até mesmo Herodíade melhorara de humor, parecia mais doce e submissa, agradável mesmo, uma grande companheira em todos os momentos. As coisas iam bem e o rei se sentia leve e de bem com a vida.

Então, houve mais uma festa, a maior de todas, para a qual fora anunciada uma homenagem especial de Salomé, a jovem filha de Herodíade, ao rei. Uma celebração realmente pomposa, cujo luxo e riqueza competiam com as do próprio César.  Herodes mandara convidar nobres de muitas partes para aquela ocasião, em que, diziam, seu nome seria gravado para a eternidade. E assim foi.

Salomé vivia o ápice da adolescência e sua formosura fazia cativo um sem-número de nobres – entre eles, o próprio Herodes, que a cobiçava ainda mais que à sua mãe quando a arrebatara. O velho rei, publicamente, tentava conter seus impulsos pela sobrinha, mas seus olhares desejosos o denunciavam a quem quer que estivesse perto, e corria mesmo entre o reino, à boca pequena, que certa vez ele quase cedera a um conselho de um outro rei, de mandar Herodíade em viagem para uma terra distante da qual ela jamais retornaria, e arrebatar a pequena Salomé para si. Perfídia a que não se resolveu devido ao medo de que o escândalo viesse a causar alguma reviravolta política que lhe custasse o reino e a vida.  

Mas a astuta Herodíade conhecia bem a volúpia do monarca e sua indisfarçável “afeição” por Salomé, de cujos encantos em mais de uma vez se valera para conseguir alguns favores mais delicados de Herodes. Agora, lá estavam mãe e filha, graciosamente trajadas, deslumbrantes e sedutoras, competindo por sua atenção, fazendo os olhos do velho rei derreterem em meio à grande festa. Insaciável, naquela ocasião mais que nunca ele cobiçava as carnes da sobrinha. E foi no ápice dos festejos que Herodíade anunciou a homenagem especial ao Grande Herodes: Salomé faria para ele a dança dos sete véus.

O monarca não pôde conter sua empolgação. Entre as centenas de olhos vidrados no corpo dançante da adolescente, os seus eram o mais famintos, os mais sequiosos. Embriagado, ele já não procurava disfarçar o que quer que fosse. Secava-a quase babando, o rosto vermelho e suado, o coração palpitante, acelerado, e na boca um sorriso abobalhado que chegou mesmo a escandalizar alguns convivas. A cada peça que a moça jogava pelos ares, a cada movimento de suas carnes jovens e sensuais, mais o rei arfava, desejoso, e esteve quase a ponto de enfartar quando viu, enfim, o corpo todo nu da adolescente ao final da dança. Arrependido por não ter cedido aos impulsos de se livrar de Herodíade para se deliciar logo no corpo juvenil da sobrinha, dizia de si para si, embasbacado: “O que ela quiser. Darei a essa jovem o que ela me pedir!”.

IV. A ordem

Ao final dos estrondosos aplausos, Herodes procurou recompor sua aparência de nobreza. Tomou um gole de vinho e, dirigindo-se à sobrinha, que arfava no centro do salão, falou-lhe:

– Foi uma bela dança, minha jovem. Uma homenagem digna de um rei. Por isso, hei de premiar-te com o que quer que me peças, ainda que seja a metade do meu reino!

Em meio ao burburinho geral, Salomé sorriu e fez uma longa mesura. Então, correu à mãe, que a abraçou, efusiva, enquanto lhe sibilava algo ao pé do ouvido. Naquele momento, Herodes curou-se repentinamente da embriaguez, e sua alegria desfez-se toda. Percebeu que havia caído numa armadilha. Enquanto Salomé voltava para o centro do salão, ele esperava apreensivo o pior. A jovem então fez seu pedido:

– Quero a cabeça de João Batista. Numa bandeja de prata.

O monarca empalideceu. Durante alguns segundos, fez-se silêncio geral. Logo, a quietude tornou-se novamente burburinho, cochichos e risadinhas. Um cônsul romano, bêbado, não pôde conter uma gargalhada, e logo foi acompanhado por outros nobres estrangeiros. Em torno, os olhares todos voltavam-se para Herodes. O rei olhou para Salomé e Herodíade, abraçadas e deliciadas com a situação, e teve ódio das duas. Fosse qual fosse sua decisão, sua imagem seria – junto ao povo ou aos nobres – ainda mais prejudicada. De cara fechada, olhou para os guardas e deu a ordem:

– Fazei o que a menina pediu.

V. A promessa

João Batista orava quando o foram buscar. Pedia perdão para seus algozes e olhou com piedade para um dos guardas, que se entristecia com a situação. Mas a execução foi rápida, e ele foi em paz.

Noutra parte da Judeia, Jesus também orava, e sentiu uma pontada no coração quando a cabeça de seu querido parente foi cortada. Chorava quando lhe foram levar a notícia, e disse consigo:

– Iremos nos rever em breve, primo. Não há de demorar agora.

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