SANTO CONTO | Com Deus nos braços

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado em relatos sobre a vida de Frei Francisco de Santo Antônio

Naquele tempo eu era sacristão, e não lá muito piedoso. Bem preguiçoso e guloso, na verdade. Mas era moleque órfão e o convento me dava de tudo o que eu precisava, então eu ia assim levando a vida, fazia o que me mandavam fazer, e no mais das horas eu comia e folgava, que era que me dava mais gosto. E foi então que o Irmão Pretinho foi transferido pra cá, vindo lá do Reino.

Já era velhinho ele, e trouxe de lá o apelido, porque por aqui já tinha um monte de irmão preto, mas lá era novidade. Me designaram pra trabalhar nas Missas dele, que por seu desejo expresso eram sempre no primeiro horário da manhã, uma tortura pra mim, que passei a ter de acordar mais cedo. Mas eu ia, mal-humorado, com cara de sono, mas ia. E quando chegava na capela ele já estava lá fazia tempo, levantava bem mais cedo pra orar, e me recebia sempre sorrindo e muito alegre, e aquele jeito dele me dava mais raiva, mas também me quebrava, me fazia gostar dele, simpatizar com ele, apesar do mau humor. Aí eu auxiliava ele nos ofícios todos até que bem feliz, e depois voltava pras minhas folganças, pra no dia seguinte acordar cedinho e cheio de azedume outra vez.

E foi depois de umas semanas dessa rotina com o Irmão Pretinho que eu notei uma coisa estranha: o Menino Jesus, que fica no colo da Virgem Santíssima do altar-mor lá da capela, me parecia que sempre estava dum jeito diferente, numa posição nova a cada manhã. Cheguei até a pensar que era eu é que estava ficando doido, que não estava batendo bem das ideias, mas fiquei encucado com aquilo a ponto de virar ideia fixa, nem dormir eu não dormia direito mais.

Um dia, logo depois de ver o Menino aninhado no colo da Mãe doutro jeito, contei pro Irmão Pretinho daquela minha cisma, meus encucamentos, e ele não disse nada, só riu muito e foi lá fazer as coisas dele. Aí na hora fiquei despeitado, com raiva dele, e não teve alegria naquela Missa pra mim. Passei a manhã toda azedo, e a tarde toda só fermentando aquela raiva, a imagem do Irmão Pretinho na cabeça, rindo de mim, e eu praguejava contra ele, nem comer comi direito aquele dia. E de noite eu pensei: “Aquele velho engraçadinho é que está troçando de mim, está aprontando pro meu lado, deve ter um monte de imagem guardada com ele, e acorda mais cedo pra mudar a imagem do altar e rir de mim enquanto fico eu aqui achando que estou louco.” “Então”, pesava eu, “o santinho diz que acorda mais cedo pra ir orar, quando na verdade fica é aprontado graça. Mas ele vai ver só!” Então planejei levantar bem mais cedo na manhã seguinte, pra pegar ele no pulo e contar tudo pro Superior, ele ia ver só se eu não me vingava!

E ruminando aquilo tudo eu nem vi a noite passar, quando me dei conta não tinha dormido nada, mas era bem a hora que eu tinha planejado levantar pra seguir com meu plano, então até achei bom. Fui pisando leve pelos corredores do convento, sabia que naquele horário o Irmão Pretinho já estava lá na capela. E cheguei lá pé ante pé, bem de mansinho, o coração batendo forte, eu já pronto pra pegar o velho na mentira e ganhar minha desforra, mas, quando cheguei na porta…

Ele me quebrou de novo, e de vez. Pois veja só, e eu digo isso diante do Santíssimo, o que eu vi foi o que conto pra todo mundo até hoje, sem mexer numa vírgula: Irmão Pretinho estava lá em oração mesmo, e no seu colo estava o Menino Deus, todo brilhante, rindo uma risada tão doce e tão terrível que me fez cair de joelho ali mesmo, chorando.

E chorando fiquei um bom tempo, vendo meu choro virar uma poça no chão, até que senti o Irmão Pretinho me batendo no ombro e me chamando. E quando me levantei e tive coragem de olhar pra ele, veja só, ele me oferecia o Menino pra eu também pegar no colo. Aí baixei a cabeça e chorei mais ainda, me sentindo um nada, um demônio, mas ele já aninhava o Pequeno comigo, e então de repente eu me vi ali, com Jesus no meu colo, e a única coisa que senti foi uma paz que nunca tinha sentido antes e que nunca mais senti de novo.

Então Irmão Pretinho me chamou pra ir com ele até o altar-mor, pra devolver o Menino pro colo da Mãe, que já estava perto do horário da Missa. E foi o que eu fiz: entreguei o Pequeno de volta pra Virgem, e Ele ali se aninhou como quis, voltando a ser só gesso.

E foi naquele mesmo dia que Irmão Pretinho morreu, com sua missão neste mundo já cumprida. O Menino Jesus ficou lá no altar-mor como deixei e nunca mais mudou de posição. E eu agradeço a Nosso Senhor todo dia por ter mandado pra cá o Irmão Pretinho, que colocou Deus nos meus braços, e eu nos braços d’Ele.  


DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor