SANTO CONTO | Chuvarada

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

História baseada em um episódio da vida de São Marcelino de Ancona

Tá é te faltando fé, menino! Então, senta aí e escuta o que eu vou te contar, e presta bem atenção, não é mentira nem brincadeira não, eu tava aqui quando aconteceu. Você é novo na cidade, e jovem, não sabe das coisas, então escuta.

A coisa se passou faz tempo, quando o finado Dom Marcelino era o Bispo daqui. Já tem uns 20 anos, mas a prova tá aí bem no seu pé, ó, tá vendo esse risco que você tá pisando? Então, o povo antigo daqui chama de A Divisória do Incêndio, porque foi aí que o fogo parou, tá vendo? Essa linha aí ficou pra sempre, marcada, divide a cidade em duas: a metade que pegou fogo, e a que não pegou.

Mas, vamos lá, deixa eu te contar direitinho. Naquele ano tava uma secura que só, não choveu quando era pra ter chovido, calorão, e em algum lugar pros lados de lá o fogo começou e foi se espalhando rapidinho. E não teve o que se pudesse fazer, não teve remédio: quando vimos, aquele fogaréu gigante já vinha caminhando de lá pra cá, comendo tudo pela frente!

É, morreu gente, sim, menino, bastante gente! E você imagina aquele povaréu todo, desesperado, largando tudo pra trás, a casa, a roça, os bichos, tudinho, e saindo embora em debandada! Foi um desespero que só! Mas era só o que dava pra fazer, fugir e largar tudo pra trás, reconstruir quando voltasse…

Mas, olha, eu te falei do Dom Marcelino, não foi? Não é que ele em vez de fugir, resolveu pessoalmente enfrentar o incêndio? Enfrentar, isso mesmo, cara a cara, ele mais o fogo, te falo, eu vi tudinho! Ele não podia andar direito, coitado, tinha gota, quem tem sabe a dor que é. Pois pediu pra ser carregado até um lugar bem no meio da cidade. Aliás, é ali, ó, tá vendo aquele banco? Pois é, foi bem ali. E um dos que ajudou a levar fui eu mesmo! Não fui? Fuuuuuuuui, tô dizendo!

Mas, vamos lá, foi assim, ó: ainda tinha um monte de gente se aprumando pra deixar a cidade, o povo mais pro extremo dos lados de cá, os sortudos, e o Bispo batendo o pé que não ia embora, insistindo que era pra levar ele aqui pro meio da cidade. Já viu Bispo dando bronca em padre? Menino… Pois uns padres que ainda estavam por aqui e quiseram fazer ele desistir da ideia escutaram, e não foi pouco! Até de frouxo chamou, assim mesmo, “seus frouxos sem fé”, ele gritava…

Pois então. Acabou que um outro padre novinho, fortão, mais eu, que acabei ficando de curioso, trouxemos o Bispo teimoso, na cadeirinha. Ele vinha sacolejando e rezando em voz alta, eu bufando do esforço, o homem era grande! Aí, pediu pra ficar ali onde te mostrei, e mandou a gente embora. O padre foi, era um dos que tinha levado a bronca, nem discutiu, foi-se embora em obediência ao Bispo, mas também rezando alto, pedindo por ele.

Eu acabei ficando, não perto do Bispo, que tava até com medo dele, homem bravo aquele! Mas fiquei na espreita mais pra trás, só observando e planejando: hora que o fogo chegasse muito perto, eu corria pra junto dele e arrastava nem que fosse na marra. E se morresse? Se morresse, era salvando um Bispo, meu filho! Já imaginou? Ia direitinho pro Céu!

Dom Marcelino ficou ali, sentado onde a gente deixou, eu mais pra trás, só de tocaia, como eu te falei. Ele abriu a Bíblia e foi lendo, e lendo, bem sossegadão, e o fogo avançando. Agora, eu vou te contar: eu tive medo. Tive sim, não nego. Quando o fogo já tava perto, quase que fui-me embora e larguei o Bispo ali mesmo. Mas fiquei, só que sem ir nem pra lá, nem pra cá. Quando me decidi a ir lá com ele, tropecei, torci o pé e caí mudo, me contorcendo de dor. E aí, o desespero: o fogo começou a pegar nele, o Bispo ia morrer queimado e depois eu, sem poder fazer mais nada!

Mas aí, veja você, a força que tem o poder de Nosso Senhor e dos homens de fé. O fogo pegou nele, mas ele não queimou! Milagre! E ele continuou lá, lendo. E aí é que eu vi mais outro milagre: hora que o fogo pegou na Bíblia, bum! Um estouro no céu e aquela chuvarada! É menino, isso mesmo! Chu-va-ra-da! Choveu tudo o que não tinha chovido na estação, até mais! E eu ali no chão empoçando, respirando aqueles pingos que batem na terra e voltam, tudo entrando no nariz, no olho, eu tonto com tudo aquilo, meu coração disparado!

E outra, quer saber? Dom Marcelino continuou lá, ainda lendo, e sequinho de tudo, era como se a água não pegasse nele, igual o fogo! Coisa de doido, é? Coisa de Deus, isso sim!

E veja, a chuva passou como veio, de repente, levou o fogo todo embora, e aí abriu aquele céu azul bonito, e eu escutei o Bispo lá cantarolando qualquer coisa, era em latim, mas era bonito, e não tinha só a voz dele, tinha outras, mas eu só via ele. Menino, você não ria não. Eu acho é que ele tava cantando junto com os anjos!

 E de repente o padre novinho, o fortão, tava ali do meu lado, me ajudou a levantar e a ir andando. Foi chegando mais gente, e foram ajudar Dom Marcelino, e de repente já tinha uma multidão por aqui louvando a Deus e bendizendo nosso Bispo. Outros chorando, a maioria era gente do lado de lá, que tinha perdido tudo. E até padre vi chorando feito criança, pedindo perdão pela falta de fé. Pois é…

E é aí que eu queria chegar, menino: fé! Você, moleque novo, besta, acha que sabe de tudo, que conhece de tudo, mas não sabe é de nada! Tá precisando de fé! Se tivesse conhecido Dom Marcelino… A fé dele foi que salvou a gente, rapaz. Trouxe aquela chuvarada que salvou a cidade. Fé de homem que se ofereceu pelo seu povo, igualzinho Nosso Senhor, e que rezou por nós, mesmo sem a gente merecer, igualzinho Ele!

Achou graça? Tá certo! Vai rindo, então. Um dia quem sabe você… Opa, olha lá! Falando em chuva, corre!


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