SANTO CONTO | A caminho

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

A todos os nascituros 

Miriam não queria a criança e estava decidida a tirar. A lei permitia e ela estava no seu direito, não havia problema algum. A caminho da clínica, seus pensamentos eram as contas, o financiamento da faculdade, os estágios, o que fazer depois do curso. Quanto à situação no seu ventre, era nada mais que um incômodo, um probleminha a ser resolvido dali a pouco. “Feto, é só um feto”, repetia para si toda vez que uma voz distante e lhe trazia a palavra “criança” à mente, “É um feto, não uma criança. Não é uma pessoa, é um feto…”

Na clínica, passou por todos os procedimentos de praxe antes da intervenção e apagou depois da anestesia.  

Acordou em seu útero. Aliás, não era mais seu, era da criança. Haviam trocado de lugar, mas de alguma forma ainda mantinha sua consciência. Olhou em volta e era mesmo o útero, entendeu tudo bem rapidamente: estava tendo algum delírio, a droga anestésica devia ser forte, mas por que tinha tanta consciência de tudo, por que parecia tão real?

Não teve tempo de pensar mais, pois começou a sentir muito medo, perder o fôlego. Estava apavorada. Não entendia como podia perder o ar, e seu coração estar batendo daquele jeito, o mesmo jeito de quando ela tinha crises de pânico. Não podia haver batimento cardíaco, não podia haver respiração, não podia sequer haver consciência, não podia…

Sentiu um líquido invadindo tudo em volta, e todo seu corpo, desde a pele ao coração e os pulmões, cada fibra de músculo, o cérebro, tudo queimava, ardia, derretia. Sentiu uma dor como jamais havia sentido antes, como se pegasse fogo, mas não morresse, e aquele fogo continuasse a consumi-la sem parar. Soluçava, engasgava, convulsionava, vomitava, e voltava  a engasgar, a convulsionar,, a vomitar.

De repente, tudo parou. A dor passou, ela sentiu-se inteira entorpecida e teve um segundo de alívio. Mas foi um segundo só. Foi acordada com a dor dilacerante da sua perna sendo cortada fora. Depois a outra, e um braço, e o outro, e enfim a cabeça. Ela podia sentir cada pedaço cortado e sendo levado embora, a dor se repetindo um sem-número de vezes, e ela novamente não morria, apenas ficava ali, impotente, vendo-se retalhada repetidas vezes, e a dor cada vez pior.

Depois, novo apagão. E, quando acordou, estava novamente em seu corpo de Miriam, queimando, mas agora com fogo de verdade, e a sensação era muito pior, era um fogo insuportável, terrível, que a queimava sem consumir. E enquanto queimava, assistia à cena que acabara de vivenciar. O líquido venenoso, a mutilação e, enfim, ela própria em pedaços espalhados em uma bandeja. E a cena, que se repetia ininterruptamente, era acompanhada de um choro desesperado e doído. E a única coisa que ela podia fazer era chorar e chorar, com os olhos ardendo, sem sequer poder piscar.

Acordou dando uma golfada de vômito. Suava e tremia. Correu para o chuveiro, a água fria a fez ver que estava bem acordada. Colocou a mão na barriga, a criança – sim, agora era uma criança – ainda estava ali. Então, lembrando de todo o pesadelo e sentido a culpa por tudo que quase fizera, e tudo o que pensara a respeito do bebê que agora amava tanto, chorou de soluçar.

Anos depois, enquanto estava a caminho da casa da filha para o chá de bebê de seu primeiro neto, passou em frente ao lugar onde um dia fora aquela clínica – lugar que sempre a fazia rezar um Ave Maria por todas as crianças não nascidas –, chorou de novo, e agradeceu a Deus pelo caminho que escolhera.


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