SANQUIXOTENE DE LA PANÇA | Mini-série ‘Adolescência’ vale ser vista

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

Não tenho saudade alguma da minha, mas a série é boa.


A série de tevê ‘Adolescência’ (Netflix), em 4 episódios de 1h, é excelente. Roteiro, direção, e atuações são praticamente impecáveis. Há mais na obra do que a maioria das resenhas tem apontado. Trata-se de “teatrocracia” de muita qualidade. A coluna desta semana é sobre tudo isso.


Terça-Feira, 35 de Quaresma de 525

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Vale muito separar 4 horas (no dia ou na semana, não importa) para assistir Adolescência, mini-série inglesa recém-lançada pelo Netflix. Quiçá, valha separar mais quatro e rever o programa. O estardalhaço que a obra causou desde o lançamento é plenamente justificado.

Adolescência foi feita para televisão. Porém, não nos enganemos, a base da série é o teatro: “uma peça em quatro atos” (Emma Stephansky, The Daily Beast). Sem exageros, seria uma peça digna de ser encenada nos festivais atenienses. É uma excelente obra de “teatrocracia”, feita para que a sociedade possa olhar para si mesma por outra perspectiva.

No caso, o alvo é a sociedade britânica. Contudo, o produto final consegue alcançar uma universalidade que lhe permite comunicar com todo mundo. Ademais, a mini-série em nenhum momento, é condescendente com a audiência. Limita-se a suscitar questões, provocando o público a encontrar as respostas.

Cada episódio apresenta uma perspectiva distinta. “Dependendo do capítulo, [‘Adolescência’] é um procedimento policial; um exame sociológico da ira masculina, das provocações cibernéticas [(“cyberbullying”)], e do falido sistema educacional britânico; um “thriller” psicológico; e uma tragédia sobre como neste século, um quarto de criança pode ser o lugar mais perigoso do mundo para ela estar.” (Alan Sepinwall – Rolling Stone) No entanto, apesar dessas diferenças, há um elo comum além do assassinato e do impacto que esse causou em cada personagem e na comunidade em geral.

Praticamente todas as resenhas fazem referência à qualidade da obra em geral [de fato, roteiro, direção, e atuações são impecáveis], à forma do programa [filmado sempre em apenas uma tomada, como que prendendo o espectador à história], e à questão da (de)formação dos jovens – mais, exatamente, dos homens [principalmente por machistas extremistas nas redes sociais]. Todos esses pontos estão presentes, mas não esgotam tudo o que o programa levanta.

Eu tampouco esgotarei o tema aqui. Há mais questões que são ressaltadas por resenhistas, por exemplo. Só listei as que me parecem ser as mais comuns. Agora, só o que quero fazer é ressaltar o que chamou a atenção tanto de mim quanto da minha esposa, mas que aparentemente escapou dos comentários sobre a série.

A trama é cheia de contrastes, entre:
– a agressividade da polícia ao prender o guri suspeito e a passividade do sistema após a prisão;
– a displicência dos professores e da direção da escola na condução de tudo o que acontece no colégio e o foco na criação de um ambiente aparentemente voltado à inclusão e à diversidade;
– o zelo do policial-pai na condução das investigações e a desatenção com o que se passa com o próprio filho;  
– a abordagem carinhosa da psicóloga ao tratar com o guri em custódia e a frieza com que ela se despede dele no final;
– os sentimentos da família diante do que aconteceu [os ressentimentos, as culpas, as dúvidas, etc.] e a necessidade de se restaurar alguma normalidade num ambiente agora majoritariamente hostil; e
– a responsabilidade intrínseca do autor pelo crime e o grau de influência do meio [inclusive, das ações da própria vítima] sobre o ocorrido.

Esses contrastes e outros apontam para falhas; para faltas. A mini-série não diz quais dessas faltas seriam relevantes, quais seriam as principais responsáveis pelo atual estado-de-coisas, e quais seriam causas fundamentais do crime. Isso tudo é jogado para a platéia.

Na cena final, o pai está no quarto do filho, chorando em dor indescritível, abraçado num urso de pelúcia. Ele coloca o urso na cama, o cobre, e o beija dizendo: “Me desculpa, filho.” Em todos os episódios, haveria uma inadequação no trato dos adultos para com as crianças; aparece um problema de autoridade ou, melhor dizendo, de falta de autoridade.

Os policiais erram ao serem policiais; os pais erram ao serem pais; os professores erram ao serem professores; os administradores erram ao serem administradores; a psicóloga erra ao ser psicóloga; os vizinhos erram ao serem vizinhos. Não surpreende, pois, que os colegas errem ao serem colegas; que as crianças errem ao serem crianças. A situação levada ao extremo terminou em morte. No caso, um homicídio; mas poderia ser um suicídio, algo, infelizmente, também mais comum do que queremos admitir.

Lá pelas tantas, o investigador principal pergunta à colega como eles sobreviveram à experiência do colégio (o que demonstra o problema estar longe de ser recente). Ela responde que só o que as crianças precisam é de uma pessoa (no caso dela, foi um professor) que lhes assegurem serem normais e que têm apoio.

Da cena, há quem conclua: “Considerando a falta de autonomia que eles encontram na escola, faz sentido: eles precisam de um lugar onde possam sentir-se livres.” (Sean T. Collins, Yahoo) É justamente o contrário. Inclusive, as crianças hoje carregam a liberdade no bolso. Autonomia, elas têm de sobra – tanto que desenvolveram até uma linguagem própria. Aquilo que elas não têm é maturidade para aproveitar bem dessa.

Maturidade se adquire com o tempo, na prática. Para chegar lá, as crianças precisam de pessoas (uma que seja) com quem criem uma relação profunda de mestre e aprendiz; que lhes entenda e que lhes mostre os limites. Essa seria a principal falta – sistêmica, generalizada, com consequências fatais – apontada por Adolescência.


P.S.: Outros dois artigos da Esmeril tratam do tema.
Sobre um caso real recente e brasileiro, a Paula Marisa escreveu o texto “Da Psicologia do Oprimido à Pedagogia do Esfaqueado“: https://revistaesmeril.com.br/opiniao%e4%b8%a8da-pedagogia-do-oprimido-a-pedagogia-do-esfaqueado-a-escola-que-sangra/
Sobre as questões envolvendo machismo e feminismo na série “Adolescência“, a Patrícia Silva escreveu “A cota de responsabilidade do feminismo na propagação do masculinismo“: https://revistaesmeril.com.br/debates%e4%b8%a8a-cota-de-responsabilidade-do-feminismo-na-propagacao-do-masculinismo/

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