O poeta português soube dar forma estética aos seus sofrimentos
A poesia, assim como a Arte, existe porque a vida não basta. E a vida não basta para se explicar, para responder a todas as perguntas que, não obstante, a própria vida se faz. Há qualquer coisa no curso da existência que aponta para o além, para a Eternidade, para a fonte do amor. Na lírica camoniana este mistério é celebrado.
Luís Vaz de Camões viveu, provavelmente, de 1525 a 1580, período que coincide com o esplendor de Portugal, talvez a principal potência do mundo na época. Camões celebra, em Os Lusíadas (1572), as conquistas da nação portuguesa obtidas em confronto com os árabes, com os espanhóis e com os mares — inimigo mui temível no século XVI.
No entanto, para além de cantar as glórias do passado nacional mediante a poesia épica, o poeta dedicou-se também às investigações do indivíduo no âmbito da sua complexidade amorosa através da poesia lírica. Em ambos os esforços de compreensão, Camões baseara-se na sua experiência pessoal e na tradição literária da Antiguidade Clássica e do Humanismo italiano.
Ele próprio trilhou o arriscado caminho para o Oriente, sobreviveu a tempestades, naufrágios e amores proibidos. Contudo, fora a sua frequência aos estudos das humanidades, dedicando-se ao latim, à literatura antiga, à mitologia, à astronomia e à geografia que lhe dera os instrumentos necessários à investigação do espírito humano.
E é esta força de compreensão da condição humana que se faz presente tanto nOs Lusíadas, quanto nas redondilhas, nas canções e nos sonetos. Nestes, em especial, o poeta dedica-se à contemplação da beleza feminina, orientando-se pelo Neoplatonismo italiano.
Camões entende o amor como um meio para o aprimoramento do caráter. Saber amar era uma delicada virtude no Renascimento; virtude que, sob as idealizações poéticas, transformara-se em disciplina filosófica. O hábito aproximava o homem do seu Criador, na exata medida em que apurava o conhecimento da Beleza, projeção máxima do esplendor divino. Em Camões, o amor confunde-se com o Logos, só atingindo a plenitude da existência mediante a expressão verbal. O poeta é um contemplativo.
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence o vencedor;
é ter, com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Camões, Sonetos
Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.
Que dias há que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei por quê.
Camões, Sonetos
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,
começa de servir outros sete anos,
dizendo: “Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida”.
Camões, Sonetos
Com informações da coletânea dos Sonetos de Camões editada pela Ateliê Editorial Editora, 6ª edição revista e ampliada, comentada e anotada por Izeti Fragata Torralvo e Carlos Cortez Minchillo, Cotia, SP, 2020.
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