A Carta de 8 de setembro assinada pelo presidente Jair Bolsonaro de maneira alguma contradiz o que ele manifestou no Discurso proferido no dia anterior.
Em tese, eu não precisaria afirmar mais nada. Afinal, como há pouco me disseram, quem explica já perdeu o debate. Contudo, ainda que possa ser verdade, explicarei minha afirmação. Para todos aqueles que crêem que já perdi, apenas digo que simplesmente estou colocando a bola no centro e reiniciando a partida.
Afinal, não posso me esquivar de responder a todos que por ventura não queiram pensar com o fígado, mas que estejam dispostos a utilizar o cérebro. O jogo não termina por causa de um gol sofrido.
A Direita apressada, figadal, revolucionária – essa que a Esquerda chama de “golpista” [na verdade, toda a Direita para eles seria golpista, mas nós aqui temos o dever de saber melhor] – é muito similar à Esquerda na hora de reagir a estímulos; não sendo raro acabarem interpretando certos fatos da mesma maneira simplesmente por se recusarem a pensar.
A reação à recente Carta do presidente Bolsonaro é um bom exemplo disso. Até aqui na Esmeril, houve quem imediatamente entendesse que com a Carta o presidente pedira desculpas ao Ministro Alexandre de Moraes. Publicou-se, inclusive, um texto em que se apresenta e se justifica certa decepção decorrente dos contrastes entre as mensagens da Carta e do Discurso no dia 7 de setembro.
Para verem como há semelhanças entre tal parcela da Direita e a Esquerda, um amigo oposicionista [ainda que se identifique como Direita, mas não quero entrar nesses detalhes agora] chamou a Carta de “carta-testamento”, por entender tratar-se de “suicídio político”. Ele afirma isso baseado justamente na reação dessa ala figadal da nossa Direita bolsonarista.
Já outro amigo que igualmente nutre asco ao atual governo [sim, eu tenho vários amigos desses] postou uma imagem no Facebook, a qual parece ter sido extraída de algum jornal ou revista. Infelizmente, ele não colocou os créditos, e eu tampouco encontrei o autor. A imagem ilustra esta publicação e é o tópico deste texto.
Tal imagem compara trechos da Carta com o Discurso. O objetivo seria o de demonstrar uma guinada de 180º na posição do presidente entre um dia e outro. Conhecendo meu amigo, ele postou exatamente para debochar da Direita figadal. So faltou chamar o presidente de “Frouxonaro”.
Pois bem, apesar de ninguém estar livre de pensar com o fígado, nós podemos e devemos superar isso. O fato é que qualquer um disposto a efetivamente ler a comparação sem considerar sua opinião quanto ao principal envolvido perceberá inexistir qualquer mudança entre uma manifestação e outra que não uma de tom.
Tom importa, é claro, mas é menos relevante que o conteúdo. Se o tom mudou foi, como consta na Carta, porque não se estava mais “no calor do momento”.
Substancialmente, no entanto, a Carta confirma aquilo que foi dito no Discurso. Se não, vejamos:
1a.
Carta: “Nunca tive intenção de agredir quaisquer dos Poderes.”
Discurso: “Nós também não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos três Poderes continue barbarizando nossa população…”
A frase que abre a Carta poderia ter sido dita no Discurso, antecedendo o trecho apontado. Assim:
“Nunca tive intenção de agredir quaisquer dos Poderes[, mas] também não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos três Poderes continue barbarizando nossa população…”
Um ataque a “uma pessoa específica” só pode ser confundido com um ataque à instituição a qual tal pessoa faz parte se personificarmos a instituição nesse indivíduo. Noutras palavras, se Alexandre de Moraes for o Poder Judiciário, Bolsonaro atacou tal Poder – ainda que sem intenção.
Agora, se o ministro não representar o Judiciário como um todo, não há o que se falar em agressão a um poder da república. Se o Judiciário não foi atacado, não há quaisquer provas de uma “intenção de agredir”.
Pode ser que algum tipo lá na manifestação quisesse que Bolsonaro atacasse o Judiciário. Mas, aí, a decepção deveria ser, não com a Carta, mas com o Discurso dia 7 de setembro. Afinal…
1b.
Carta: “A harmonia entre eles não é vontade minha, mas determinação constitucional que todos, sem exceção, devem respeitar.”
Discurso: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder vai sofrer aquilo que não queremos.”
Afinal, Bolsonaro deixou claro no Discurso que não quer que o Judiciário sofra por causa das ações de “uma pessoa específica”. Não só o Bolsonaro não quer atacar o Judiciário, como ele foi mais além, afirmando que compete primariamente ao Poder Judiciário lidar com o problema.
A Carta esclarece. O Judiciário precisa agir, pois a harmonia entre os Poderes, a qual não é fruto de mera vontade do titular do Poder Executivo, está sendo debilitada pelas ações do referido ministro. Todavia, o dever de zelar por essa também recai, não só ao ministro, mas a todo o Poder Judiciário.
2.
Carta: “Sei que boa parte dessas divergências decorrem de conflitos de entendimento acerca das decisões adotadas pelo Ministro Alexandre de Moraes…”
Discurso: “Não podemos mais admitir que pessoas que agem dessa maneira continue[m] no poder…” [“… uma pessoa específica da região dos três Poderes…”]
No Discurso, o presidente enfatizou que “uma pessoa específica”, a saber, Alexandre de Moraes, estaria agindo de maneira inadmissível para com o cargo que ocupa.
Na Carta, ele informa que as tais ações inadmissíveis mencionadas no Discurso são “decisões adotadas pelo Ministro Alexandre de Moraes”.
3.
Carta: “… na vida pública as pessoas que exercem o poder, não têm o direito de ‘esticar a corda’, a ponto de prejudicar a vida dos brasileiros e sua economia”
Discurso: “… qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, este presidente não mais cumprirá.”
Aqui, novamente, é possível simplesmente juntar os trechos trazidos na imagem para comparação sem que esses se contradigam, mas, pelo contrário, complementam-se:
“… qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, este presidente não mais cumprirá[, pois] na vida pública as pessoas que exercem o poder[] não têm o direito de ‘esticar a corda’, a ponto de prejudicar a vida dos brasileiros…”
A Carta justifica a declaração do Discurso, pois o ministro estaria agindo de maneira contrária ao Direito; logo, ilegitimamente.
4.
Carta: “… minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento e dos embates que sempre visaram o bem comum.”
Discurso: “Dizer a esse indivíduo que ele tem tempo ainda de se redimir. Tem tempo ainda para arquivar seus inquéritos. Ou melhor, acabou o tempo dele. Sai, Alexandre de Moraes.”
Esta comparação aqui é absolutamente sem sentido. A não ser que se entenda Alexandre de Moraes ser fundamental para o bem comum dos brasileiros, não há qualquer relação entre os trechos.
Provavelmente nem Michel Temer, que indicou Moraes e redigiu a Carta assinada por Bolsonaro, crê que o ministro tenha tamanha relevância para a comunidade política nacional.
5.
Carta: “… suas qualidades como jurista e professor …”
Discurso: “Deixa de ser canalha”
Novamente, há dois trechos sem qualquer conexão. Ou alguém seriamente acredita que “jurista e professor” seja algo incompatível com canalhice?
6.
Carta: “Sendo assim, essas questões devem ser resolvidas por medidas judiciais que serão tomadas de forma a assegurar a observância dos direitos e garantias fundamentais previsto[s] no Art. 5º da Constituição Federal…”
Discurso: “Não podemos mais admitir que pessoas que agem dessa maneira continuem no poder continue no poder exercendo cargos importantes…” [“… ou o chefe desse Poder enquadra o seu…”]
No Discurso, Bolsonaro reitera que a presença de Moraes é inadmissível; e, acrescento, que seja de responsabilidade do Judiciário resolver tal questão. Como o Poder Judiciário resolve questões?
A Carta responde: “por medidas judiciais”. O Executivo não se esquivará de forçar o Judiciário para que esse aja.
9.
Carta: “Sempre [eu] estive disposto a manter diálogo permanente com os demais Poderes pela manutenção da harmonia e independência entre eles.”
Discurso: “A paciência do nosso povo já se esgotou[. Moraes] tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida. Ele, para nós, não existe mais.”
No Discurso, o presidente afirma que o povo perdeu a paciência. Por quê? Ora, a carta esclarece. Segundo a Carta, Bolsonaro sempre esteve disposto a manter diálogo e preservar a harmonia; ao contrário de Alexandre de Moraes.
Conforme os dois trechos apontados, o povo quer diálogo, harmonia, e independência entre os Poderes; e Bolsonaro estaria disposto a promovê-los. Contudo, Alexandre de Moraes não estaria colaborando, pelo que seria preciso dar um “basta” urgentemente. Para resgatar a harmonia perdida, seria mister que Moraes deixasse o STF. O ministro ainda teria tempo para agir certo e retirar-se espontaneamente.
P.S.:
Provavelmente, a principal diferença entre a Carta e o Discurso seja uma renovada tolerância, ainda que condicionada, à presença de Moraes no STF. Todavia, não se trata de algo capaz de promover uma decepção àqueles da base que desejam sua saída.
Frise-se que tal tolerância fora aventada no Discurso do dia 7. Antes de clamar pela saída de Moraes, Bolsonaro disse: “… ele tem tempo ainda de se redimir. Tem tempo ainda para arquivar seus inquéritos.” Portanto, nem isso chega a ser novidade.
Espero que a complementariedade e ausência de contradições entre o Discurso e a Carta tenham ficado evidentes depois desta leitura.
O bode continua na sala espalhando seu fedor. Já vivi esta guerra e o mesmo discurso com algumas variações. Que nem num filme de terror com as partes 1,2,3… A manipulação mental dos que pagam impostos, dos que agem tocando fogo no circo, das promessas repetitivas que são dissolvidas e esquecidas diante dos fantasmas que saem debaixo da cama. Resta a esperança… O mundo dos poderosos, dos que decidem, é o campo das armadilhas que sufocam a vida.
É preciso ter paciência, Alex. Política é um jogo que nunca acaba. Só nos cabe seguir jogando.
A chave de tudo aqui está no item 3, ser “sua economia” e não “suas economias”.
Se fosse “suas economias”, Temer estaria falando de Alexandre de Morais, que estaria esticando a corda a ponto de prejudicar a vida de alguns brasileiros, incluindo as economias desses brasileiros em específicos. Todavia Temer utilizou “sua economia” no contexto amplo e não do patrimônio específico de pessoas específicas, indicando que igualmente brasileiros não sejam cidadãos específicos, mas o conjunto de pessoas doravante conhecidos como brasileiros, em sua totalidade.
O item 3 não versa sobre Alexandre de Morais, mas versa sobre o assinante, Bolsonaro. O item 3 (que é preparação para o 4 que vem a confirmar ao ser escrito de forma personalíssima na 1ª pessoa) é o mea-culpa e a justificativa aos correligionários do porquê ele, Bolsonaro, estar recuando. Se ele “esticar a corda” para defender o seu ponto, a economia degringola prejudicando a vida dos brasileiros, e isso não é um direito dele como quem exerce o poder.
No item 4, Bolsonaro contemporiza o próprio vocabulário, acenando ele, com intenção de maneirar o vocabulário que insufla relação beligerante. 3 e 4 é a explicação de Bolsonaro que a investida não pode ser inconsequente, que ele está colocando o galho dentro no ritmo do avanço e porquê está a colocar o galho dentro.
Bons pontos, Victor. Obrigado!