Como advogado e egresso de um bom curso de direito, adquiri o hábito de ler alguns trechos da Constituição de 1988 de tempos em tempos, e o meu preferido é este:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Publicada há 36 anos, o tempo, como juiz soberano que é, nos indica um veredito: a Constituinte de 1988 não conseguiu concretizar nenhum de seus objetivos fundamentais. Notem: esses quatro objetivos fundamentais da Constituição justificam sua existência; sem a busca por sua concretização, não há motivos para sequer mantê-la em vigor.
Em 2024, portanto, qual é o quadro que temos que lidar? 56% da população brasileira ainda não possui acesso a saneamento básico; nossos alunos, mais uma vez, figuram entre os piores do mundo em matemática e interpretação de texto; a violência urbana continua endêmica, com mais de 45 mil assassinatos por ano; o crime organizado continua expandindo seus tentáculos, controlando porções inteiras de bairros de grandes cidades; o Real continua perdendo seu poder de compra, corroendo a poupança dos brasileiros; a dívida pública atingiu valores maiores do que na pandemia da COVID; 20 milhões de famílias continuam dependentes de migalhas estatais para sobreviver; a Previdência Social continua a gerar déficits cada vez maiores, sem solução à vista, etc., para citar apenas alguns dos problemas mais óbvios que o país tem que enfrentar.
E o que o STF, o guardião da nossa nauseabunda Constituição, anda fazendo? Ah, sim, lembrei: está ocupado demais em sua cruzada contra um bilionário americano que posta comparações do Ministro Alexandre de Moraes com o Lorde Voldemort. O brasileiro, tendo que conviver diariamente com a ansiedade de ser brasileiro diante de um futuro lúgubre, agora não pode mais acessar o X, sob pena de ser multado em 50 mil reais por dia de acesso. Enquanto dezenas de milhares de crimes violentos continuam sem solução e sem justiça para as famílias das vítimas, o mero fato de eu, cidadão brasileiro comum que pagou seu exorbitante imposto de renda de 27%, ousar comentar algo em uma rede social já me coloca na mira da Polícia Federal como terrorista atentando contra a democracia brasileira.
Embora isso tudo seja obviamente kafkiano ou orwelliano — ou ambos, como queira —, não é de modo algum surpreendente. A Constituição e a democracia brasileiras não foram feitas para solucionar os problemas sociais, mas para dificultar possíveis soluções descentralizadas. O verdadeiro incentivo para o STF e a classe política é controlar a opinião dos cidadãos — sob o pretexto de “defender a democracia” — e não resolver os graves e crônicos problemas sociais, porque, se realmente fosse, não se gastaria 500 mil reais ao ano com lagostas e vinhos finos, nem se pagariam salários altíssimos para garçons e motoristas, e muito menos existiriam excrescências como o auxílio-terno para magistrados. Não, a classe política e burocrática serve a si mesma e manipula a Constituição a seu bel-prazer para convencer o povo de que seus gordos salários são necessários para a manutenção da ordem e do progresso.
Charles de Gaulle, quando veio ao Brasil, famosamente disse que “o Brasil não é um país sério”, e realmente não o é. Como poderia sê-lo? Somos tão miseráveis que o atual presidente foi eleito literalmente prometendo picanha e cerveja. Imaginem algo equivalente nos Estados Unidos: Trump foi eleito prometendo Mountain Dew e McDonald’s subsidiado para a população. É algo tão idiota que soa inimaginável, mas aconteceu, nas suas proporções, aqui no Brasil em 2022, uma das maiores democracias do mundo. Não é à toa que todos os grandes filósofos da política condenaram a democracia como a antecâmara da tirania, e, em contrapartida, seu maior defensor na modernidade foi Jean-Jacques Rousseau, um louco que jogou seus filhos num orfanato após escrever um livro sobre como educar crianças.
Constituição, democracia, sufrágio universal, direitos sociais etc., são todas palavras vazias na ciranda verborrágica que hipnotiza o cidadão enquanto sua vida vai se degradando lentamente na criminalidade inflacionária que é existir no Brasil — e não se pode nem xingar muito no Twitter. A Constituição de 1988, como esperado, já se tornou obsoleta e é letra morta, mas continuará em vigor até a implosão do Estado brasileiro em algum momento nas próximas décadas. Pelo menos espero que poder reclamar no X seja lícito novamente até lá.
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“Charles de Gaulle, quando veio ao Brasil, famosamente disse que “o Brasil não é um país sério”, e realmente não o é.”
A frase não é dele. É de um diplomata brasileiro ao de Gaulle. E não sei se é realmente pejorativa.