JOAO EIGEN丨O problema da desobediência civil na democracia

Joao Eigen
Joao Eigenhttp://www.youtube.com/@joaoeigen
Escritor, Mestre em ciência política (UFSC), advogado e youtuber. Autor de "O fascismo como ideologia e a revolta totalitária", da Appris editora.

Após passar anos utilizando o TSE para adquirir dados pessoais de cidadãos brasileiros em redes sociais, numa duvidosa utilização tanto do tribunal eleitoral quanto do Judiciário, o Ministro Alexandre de Moraes baniu a rede social X no Brasil. O que foi revelado pelos jornalistas Michael Shellenberger e David Ágape nos “Twitter Files” colocou Moraes numa saia-justa, tornando-o alvo de severas críticas pelos defensores dos direitos e liberdades individuais. Mas o mais curioso é que boa parte dos brasileiros comemorou o banimento do X, celebrando a cruzada de Moraes para supostamente “proteger a democracia”.

Há um grave problema moral com a população brasileira que, aparentemente, não consegue se unir numa manifestação unânime de repúdio a um funcionário público que, vez após vez, violou a Constituição, o Marco Civil da Internet e a LGPD para transformar o TSE numa máquina de espionagem política. Mas por que isso? Em seu clássico “Desobediência Civil”, Thoreau defendeu a luta individual contra decisões injustas, tanto do ponto de vista legal quanto moral, um opúsculo celebrado por individualistas de toda estirpe; mas a obra não é inovadora: a desobediência civil é uma ideia central na visão de mundo ocidental cristã, levada ao paroxismo com a defesa do regicídio pelo jusnaturalista Juan de Mariana no século XVI. Esse conceito, mesmo em sua forma mais branda de protesto, como acessar o X via VPN no conforto de casa, parece ter se perdido. Basta ler o que os confusos brasileiros dizem por aí: “Se tivesse obedecido à ordem judicial…” ou “tem que obedecer à decisão de um juiz numa democracia”.

Pois bem. Não faz muito tempo que um cidadão na modernidade ocidental reconhecia a autoridade de juízes, nobres e reis para guiar os rumos da vida civil, mas também tinha plena consciência de que tais autoridades eram outorgadas e precisavam ser mantidas pela obediência a estritos preceitos de obrigação moral. Havia os súditos, os governados, e os governantes, numa relação fundamentada em um tipo de contrato social não-verbal sedimentado pela visão cristã do mundo, e as partes do contrato sabiam bem suas obrigações. Os súditos sabiam que, caso os governantes não cumprissem suas obrigações, cabia-lhes a revolta e a desobediência — basta ler as incontáveis revoltas de camponeses durante o início da Baixa Idade Média; a distinção das partes e suas obrigações era clara. Mas a crescente popularidade da democracia embaralhou essa equação.

O Brasil é uma “República Democrática”, onde o Estado é uma “coisa pública”, pertencente nominalmente a todos os cidadãos, que, por meio do sufrágio universal democrático, podem influir em algum grau na seara decisória desse grande patrimônio público. Não há mais súditos e governantes, há apenas cidadãos que se dividem entre “votados” e “votantes”, numa ciranda temporária de utilização do Estado para supostos fins sociais. Mas, a rigor, tudo o que o Estado faz é legitimado pela ideia de que ele pertence a todos. Se antes o súdito detinha direitos individuais inalienáveis, oriundos de uma concepção moral cristã que garantia o fundamento do pacto social, hoje os direitos individuais encrustados na Constituição são apenas expedientes relativizáveis dentro de um arcabouço igualmente maleável nas mãos de funcionários públicos imbuídos de salvar a “democracia”. Isto é, salvar a nós mesmos porque, afinal de contas, é tudo nosso! As ações e decisões de Alexandre de Moraes, nesse sentido, não são atos tirânicos e ilegais, mas a vontade do povo numa luta contra si mesmo para salvar a si mesmo: aparentemente, luta-se para salvar a democracia numa sociedade que apoia a democracia quase unanimemente.

Se não há uma clara distinção entre quem obedece e tem o dever de se rebelar e os que mandam e devem ser criticados, fiscalizados e, se necessário, expurgados, então a própria ideia de Estado de Direito fica em xeque, e os freios e contrapesos dos direitos individuais da Constituição correm o risco de serem frequentemente relativizados no infernal labirinto das disputas jurídicas sem fim. Portanto, não estranhem o bizarro fenômeno de uma expressiva parte dos seus concidadãos estarem referendando as ações de Alexandre de Moraes e a possibilidade da censura em massa no Brasil. Eles acham que, de alguma forma, estão ajudando a salvar a democracia, enquanto aqueles que protestam, em sua maioria, também o fazem temendo que a democracia esteja em perigo.

Talvez o maior erro da modernidade tenha sido se convencer, mesmo que por um breve momento de loucura, de que meras palavras e termos apagariam a eterna divisão entre súditos e governantes. Quando se trata do Estado, independente de sua forma, sua natureza permanecerá a mesma: é o monopólio da violência e do poder, seja ele absolutista, soviético ou democrático. E, frente ao Leviatã, deve-se sempre estar pronto para a desobediência civil.

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